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Algemada no hospital: médicos ignoram lei e denunciam mulheres que abortam

Uma jovem de 21 anos procurou socorro em uma Santa Casa no interior de Minas após complicações de um aborto. Mesmo com a vida em risco, seu médico a denunciou à polícia, que a interrogou e a algemou no leito hospitalar. A jovem agora responde processo por homicídio duplamente qualificado, tentativa de aborto e ocultação de cadáver.

O caso não é isolado. Pesquisas indicam que médicos e outros profissionais de saúde desafiam as leis do Brasil, que obrigam o profissional de saúde a guardar sigilo sobre as informações que recebem de seus pacientes.

O que aconteceu em MG

A paciente foi encaminhada à Santa Casa de Araguari, a 574 km de Belo Horizonte, depois de ter procurado um pronto-socorro na pequena cidade em que mora. O caso foi em outubro de 2020 e a jovem estava com dor abdominal, sangramento e expelindo coágulos.

Na UTI da Santa Casa, ela foi atendida pelo médico Roberto Laurents de Sousa. O ginecologista suspeitou de aborto e chamou a Polícia Militar.

No boletim de ocorrência, três PMs confirmam que foram acionados pelo ginecologista. Um deles diz que o médico, “ao fazer os exames clínicos, percebeu que a paciente havia passado por um aborto”. “Diante dos fatos, fomos autorizados pelo médico a falar com a autora”, complementa outro.

Diante da pressão do interrogatório, a paciente confessou o aborto, recebeu voz de prisão imediatamente e teve as mãos e pés algemados na maca. Escoltada por dois policiais, ela ficou três dias algemada — dois na UTI e outro no quarto. O pedido de prisão preventiva após a alta foi negado pelo juiz.

O que dizem os envolvidos

Médico não respondeu o UOL. A defesa da jovem confirmou as informações, mas a paciente não deu entrevista porque o processo está em segredo de Justiça.

O médico não respondeu as mensagens enviadas pela reportagem. Como ele não constituiu advogado, o UOL tentou contato com o ginecologista em dois celulares, pelo WhatsApp, pelo Instagram e pelo Facebook. Também encaminhou e-mail e o procurou por meio da Santa Casa de Araguari.

A Santa Casa disse em nota que “logo após o atendimento foram acionadas as autoridades pertinentes com o intuito de resguardar outra vida”. O texto afirma ainda que “a paciente foi acolhida e devidamente atendida”.

Embora o depoimento dos policiais indique que a polícia foi acionada para apurar um aborto, o Ministério Público acusou a jovem também por homicídio e ocultação de cadáver. O MP alega que o feto pode ter sido expelido ainda com vida, morrido posteriormente e que a mulher teria ocultado o corpo ao embrulhá-lo em uma toalha.

A mulher, no entanto, diz que a criança nasceu sem vida. A advogada dela, Luiza Oliver, alega que o MP tenta “justificar a atitude ilegal do médico” ao denunciar homicídio.

Para a defesa, mesmo se houvesse vida no feto, “o médico não poderia acionar a polícia porque o compromisso dele é com a paciente”. Procurado, o MP não respondeu.

Por que a denúncia é ilegal

A primeira proibição está no Código de Ética Médica. O artigo 73 diz que é “vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”.

A segunda está no Código Penal. O artigo 154 considera “violação do segredo profissional” que alguém revele “segredo de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”.

Além de delatar, o médico depôs contra a paciente em fevereiro deste ano — e violou o artigo 207 do Código Penal. O texto diz que “são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.

“A lei estabelece o segredo profissional porque em certas profissões a base da relação é a confiança, como em um tratamento médico. Você não vai a um médico, advogado ou padre se não confia nele. Imagina ir a um médico e depois descobrir que ele revelou algum segredo seu a terceiros?“, Euro Bento Maciel Filho, advogado criminalista.

No STJ, em março deste ano, a Sexta Turma anulou provas consideradas ilegais de um processo justamente porque a mulher foi denunciada por seu médico pelo aborto. O relator, ministro Sebastião Reis Júnior, citou o Código Penal para reafirmar que o médico é “proibido de revelar segredo de que tem conhecimento em razão da profissão”.

No entanto, portaria de Bolsonaro recomendava denúncia. Quando a jovem foi denunciada estava em vigor uma portaria editada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que recomendava aos profissionais de saúde que denunciassem casos de aborto. O texto, revogado pelo governo Lula, seria inválido porque portarias não se sobrepõem às leis já em vigor.

“A Constituição está acima de tudo, depois vêm as leis criadas pelo Legislativo. Portaria, provimento, regimento, resolução podem ser uma recomendação, mas não substitui lei”, Euro Bento Maciel Filho, advogado criminalista.

O Conselho Federal de Medicina defende o Código de Ética. Procurado, o CFM afirmou que “exige a observação de todos os pressupostos inseridos no Código de Ética Médica” e que “cabe ao médico preservar o sigilo das informações oferecidas pelo paciente”.

“Caso seja confrontado em atendimento com situações excepcionais, mas que não configuram obrigatoriedade de reporte às autoridades, o médico pode reportá-las em prontuário clínico para se preservar de eventuais desdobramentos”, CFM, em nota .

O que indicam pesquisas

Cuidar ou delatar? Esse é o título de um estudo da Universidade Federal do Paraná sobre a violação do sigilo médico e criminalização, no qual foram analisados processos de 43 mulheres por aborto naquele estado entre 2017 e 2019. Os resultados:

  • 44% das mulheres citadas foram reportadas à polícia por profissionais de saúde;
  • 65% tiveram seu prontuário médico compartilhado com a polícia sem consentimento;
  • 58% dos casos em que a mulher foi denunciada à Justiça, os profissionais de saúde foram arrolados como testemunhas de acusação;
  • 84% das mulheres citadas foram atendidas pelo SUS. Caso seja confrontado em atendimento com situações excepcionais, mas que não configuram obrigatoriedade de reporte às autoridades, o médico pode reportá-las em prontuário clínico para se preservar de eventuais desdobramentos. CFM, em nota

“O perfil da mulher se repetia: pobre, pouco instruída, moradora de periferia. Este não é necessariamente o perfil das mulheres que fazem aborto, mas o das mulheres presas por terem feito aborto”, Trecho da pesquisa Cuidar ou Delatar?, da UFPR.

Em outro estudo sobre o tema, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro analisou os casos de 42 mulheres processadas por aborto no Estado em 2017. Pesquisadores tiveram acesso aos processos — inclusive às declarações feitas nas delegacias. E chegaram à seguinte conclusão:

  • 30,9% delas foram denunciadas pelo hospital ou posto de saúde;
  • 52,3% foram denunciadas à Justiça após investigação policial;
  • 9,5% foram denunciadas por familiares;
  • 4,7% foram denunciadas por terceiros;
  • 2,3% das denúncias partiram da própria vítima.

Enquanto as mulheres denunciadas por profissionais da saúde são “negras, pobres, com baixa escolaridade e residentes em áreas periféricas” , 53% das que foram surpreendidas nas clínicas eram brancas e 75% tinham cursado o ensino médio, contra 22% do outro grupo. O maior número de mulheres denunciadas após investigação policial se deve a uma apuração deflagrada contra clínicas clandestinas de aborto naquele período.

“As mulheres que têm condições de procurar clínicas de aborto são mais instruídas e o fazem logo no começo da gravidez”, Trecho da pesquisa da Defensoria Pública do RJ.

A jovem citada no início da reportagem vem de uma situação de vulnerabilidade social. Criada pela mãe, trabalha desde os 14 anos em uma cidade de 25 mil habitantes. Só conseguiu se defender porque o escritório de advocacia que assumiu seu caso (Toron Advogados) tem o programa gratuito Alê Szafir para atender clientes em vulnerabilidade social. O processo está com o juiz para que decida se ela será submetida a Júri Popular. A defesa tenta anular o processo por meio de um habeas corpus protocolado no STJ com base na decisão de março do tribunal sobre o caso semelhante.

Fonte: UOL

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