Brasil é questionado na OEA sobre resgatada da escravidão na casa de juiz em Florianópolis
Organizações e sindicatos pediram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), nesta sexta (27), que o Brasil seja questionado sobre o caso de uma trabalhadora que, após ser resgatada de condições análogas às de escravo por uma equipe de fiscalização, foi levada de volta para a casa de um desembargador, em Florianópolis (SC), onde morava e trabalhava.
O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre outras organizações, enviaram comunicação à Tânia Reneaum Panzi, secretária-executiva da CIDH, que fica em Washington DC, nos Estados Unidos. Segundo as entidades, houve desrespeito às política de combate à escravidão adotada no Brasil e às normas internacionais subscritas pelo país.
Com aval do ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jorge Luiz de Borba, flagrado pela fiscalização por manter Sônia Maria de Jesus em situação de escravidão doméstica por quase 40 anos, levou a trabalhadora de volta para a casa dele em 6 de setembro. Negra e surda, ela estava em um abrigo desde que havia sido resgatada por um grupo especial de fiscalização do poder público federal em junho.
Na época, Mendonça negou um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União (DPU) contra a decisão do ministro do Superior Tribunal de Justiça Mauro Campbell. Ambos autorizaram o desembargador e sua esposa, Ana Gayotto de Borba, a visitarem Sônia no abrigo e a levarem de volta para a residência deles, em Florianópolis (SC), caso ela demonstrasse “vontade clara e inequívoca” Diante da operação de resgate, o casal negou todas as acusações, disse que Sônia foi criada como uma filha e entrou com um ação para ser restituída ao seu convívio familiar. O argumento usado pelas autoridades para mantêla longe da família é de que o casal é investigado exatamente por escravizá-la.
A coluna conversou com auditores fiscais do trabalho e procuradores do trabalho que participaram, nos últimos quatro anos, de resgates de empregadas domésticas submetidas a condições análogas às de escravo. Afirmaram que é comum que elas mantenham forte relação afetiva com os patrões, pois a casa deles era a única realidade com a qual tiveram contato por décadas.
Sônia tem deficiência auditiva, mas nunca havia sido ensinada a ela a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com isso, ela se comunicava principalmente por gestos com a família. Ela começou a aprender Libras e português no abrigo onde ficou após resgatada.
Segundo a fiscalização, na casa do desembargador, ela fazia refeições com as demais empregadas e realizava tarefas domésticas necessárias à rotina da residência, como arrumar camas, passar roupas e lavar louças sem o devido registro em carteira, sem receber salário, sem jornada de trabalho, férias e descansos semanais definidos.
Não tinha acesso a atendimento de saúde, tendo perdido dentes.
Jorge Luiz de Borba afirmou que ela é sua filha afetiva, prometendo adotá-la. Contudo, uma postagem no Instagram de sua esposa mostra Sônia relacionada em uma lista de “funcionárias” do casal, conforme esta coluna revelou ainda em junho. Ela também não aparece entre as pessoas que Ana Gayotto postou, em um 23 de setembro, para celebrar o Dia dos Filhos. Também não aparece em outra imagem, de 2019, em que comemora a
“família toda reunida”.
O coordenador da operação, Humberto Camasmie, foi afastado do caso sob a alegação de que violou o segredo de Justiça ao conceder uma entrevista a um programa de TV. Mas o caso já era público quando ele deu tratou do tema.
O que as entidades querem que o Brasil responda
Além do Cejil e da CPT, subscrevem a comunicação à Comissão Interamericana, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), o Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), a Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Anafitra), o Instituto Trabalho Digno (ITD) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados Rurais (Contar).
Eles pedem para a Comissão questionar o Brasil se Sônia recebeu atendimento social adequado após ser resgatada, se era capaz de consentir de forma livre, consciente e espontânea a retornar à casa de seus patrões, se ela vem recebendo educação formal para ser reinserida no mercado de trabalho.
Mas também quais as provas que a Justiça usou para desqualificar a caracterização de trabalho escravo, se o retorno à casa do patrão se deu após uma decisão liminar e por que o auditor fiscal que coordenou a ação está sofrendo processo administrativo.
E solicita que a Comissão peça ao Brasil que explique como vem combatendo o trabalho escravo doméstico, que medidas toma para evitar casos parecidos com o de Sônia e se os atores públicos envolvidos no combate do crime e reinserção de vítimas estão conseguindo fazer seu trabalho.
“O caso da Sônia é gravíssimo pois as instâncias máximas do sistema de Justiça brasileiro, acessadas por um magistrado, decidiram desqualificar e deslegitimar a atuação de agentes públicos que têm mandato para fazer o que fizeram: resgatar alguém que era claramente vítima de condição escrava e por décadas”, afirma Xavier Plassat, um dos coordenadores do programa de combate à escravidão da CPT e um dos signatários da comunicação à CIDH.
Segundo ele, isso abalou as políticas brasileiras de combate ao trabalho escravo contemporâneo, que resgatam pessoas desde 1995.
A comunicação cita que a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), coordenada pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, aprovou uma nota pública, em 29 de setembro, afirmando ser “absolutamente inaceitável o processo de retorno da vítima Sônia à cena do crime”.
Questionada pelo UOL, na época da publicação da matéria, sobre as postagens no Instagram, a família Borba afirmou, através de sua assessoria, que “em respeito às decisões da Justiça, não haverá manifestação enquanto perdurar o sigilo”.
Após a repercussão do caso, o desembargador, sua esposa e os quatro filhos do casal assinaram uma nota à imprensa anunciando que vão ingressar na Justiça com pedido de filiação afetiva, garantindo direitos de herança.
Também afirmaram que jamais tolerariam trabalho escravo, “ainda mais contra quem sempre trataram como membro da família”, e que estão colaborando com as autoridades.
Trabalho escravo contemporâneo no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Os mais de 61,7 mil trabalhadores resgatados, desde 1995, estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades.
Em 2021 e 2022, 30 pessoas foram resgatadas por ano do trabalho escravo doméstico.
A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.
Fonte: Coluna Leonardo Sakamoto no UOL