Cecilia Machado Os efeitos da inteligência artificial no emprego e na redução de renda
Segundo estudo, até 70% da mudança na estrutura salarial dos EUA vem da automatização
“Mitigar o risco de extinção por inteligência artificial (IA) deve ser uma prioridade global, junto com outros riscos de escala social, como pandemias e guerra nuclear.”
Essa alarmante frase é o conteúdo integral de uma carta aberta assinada por executivos e pesquisadores que trabalham com IA, entre eles Sam Altman, CEO da OpenAI.
Altman, o homem por trás do ChatGPT, também reconheceu, em testemunho à subcomissão do Senado de supervisão à IA no mês passado, que espera que a IA traga um profundo impacto nas relações de trabalho. Cerca de até 20% dos empregos globais podem ser automatizados com IA, segundo algumas estimativas.
Historicamente, os processos de adoção de tecnologias foram capazes de trazer melhoras substanciais às nossas condições de vida, seja através da descoberta de vacinas e tratamentos médicos, seja através do aumento de produtividade agrícola e industrial, seja por meio de avanços que liberaram o tempo das pessoas para se dedicarem a projetos mais ambiciosos e satisfatórios. Basta lembrar que até pouco atrás a expectativa de vida era muito mais baixa, assim como a desnutrição e a situação de pobreza extrema eram muito mais altas. As condições de emprego são melhores para a grande maioria das pessoas.
Apesar de o senso comum dizer que avanços tecnológicos melhoram a vida das pessoas de forma inequívoca, esse nem sempre será o caso. Há mudanças que geram ganhos para um pequeno grupo, mas que podem prejudicar um outro grande contingente de pessoas, como no caso dos processos de automatização. No limite, pode ser muito produtivo ter uma fábrica (ou empresa) que não emprega nenhum (ou poucos) trabalhador (trabalhadores), o que aumenta a produtividade da economia, mas não necessariamente contribui para aumentar a produtividade do trabalhador ou os seus salários.
A direção do progresso tecnológico —se aumenta a substituição dos trabalhadores em processos de automação ou se expande as capacidades produtivas através de ganhos que complementam as habilidades dos trabalhadores— importa de forma substancial.
Daron Acemoglu, professor de economia do MIT, ganhador da Clark Medal de 2005 (visto como um equivalente ao Prêmio Nobel para economistas jovens) e grande especialistas sobre os impactos da automação e da transformação digital na reconfiguração das relações de trabalho é uma das mais importantes vozes para que as inovações tecnológicas —incluindo a IA— sejam direcionadas para trazer prosperidade compartilhada (“shared prosperity”).
Em seus estudos, Acemoglu mostra que grande parte do aumento da desigualdade e da redução da participação do trabalho na produção da economia está relacionado à tecnologia digital e à automatização de processos. Isso porque grande parte das mudanças que ocorreram no mercado de trabalho a partir da década de 80 vem de trabalhadores que se especializavam em funções que foram automatizadas.
Este estudo documenta que cerca de 50-70% da mudança na estrutura salarial dos Estados Unidos vem do processo de automatização, que é responsável pelo declínio salarial de grupos de trabalhadores especializados em tarefas rotineiras em funções que foram automatizadas. Ainda não sabemos se a IA é uma tecnologia que irá complementar ou substituir o trabalho, mas a evidência preliminar aponta para ganhos de produtividade da economia que são acompanhados por uma adoção tecnológica que substitui os trabalhadores em vez de complementar as suas habilidades.
Acemoglu é signatário de um manifesto um tanto quanto diferente daquele assinado por Altman: uma carta aberta a favor de uma pausa de pelo menos seis meses nos treinamentos de IA mais avançados que GPT-4 até que se entenda melhor as consequências deste avanço tecnológico. Altman e muitos outros executivos do Silicon Valley não assinam essa carta –não parece mesmo ser boa ideia conter os avanços que estão na fronteira do conhecimento–, mas reconhecem que o desenvolvimento da IA apresenta graves riscos e que um ambiente regulatório mais firme se faz necessário neste momento.
A sociedade que conhecemos se organiza em torno do trabalho. Num futuro distópico, como redefinir o senso de pertencimento e contribuição das pessoas em uma sociedade na qual elas não trabalham? Se os ganhos da IA são inequívocos, não se sabe como serão compartilhados. Seria possível, alternativamente, direcionar os avanços tecnológicos para amplificar as habilidades dos trabalhadores, gerando outras oportunidades de emprego? Perto do grande potencial disruptivo que a IA pode gerar, seis meses até que não parece tanto tempo assim.
Fonte: Coluna Cecilia Machado/Folha de São Paulo