Como os anos finais da escravidão moldaram a segurança pública no Brasil
Sensibilizada pelos acontecimentos dos últimos dias, envolvendo operações policiais em São Paulo e na Bahia, que resultaram em cerca de 33 mortes e pela urgência de um debate mais amplo sobre segurança pública, a Coluna Presença Histórica abordará neste mês de agosto diferentes dimensões do tema. Como demonstrei em minha pesquisa de doutorado, estamos diante de persistências históricas de um longo passado marcadamente escravista e desigual. É preciso recuar no tempo para compreender por que esses problemas são profundos e complexos.
A década de 1870 trouxe novos contornos à pauta da emancipação de pessoas escravizadas no Brasil. Essa questão tomou fôlego nas discussões parlamentares a partir não só de pressões internas -com as mobilizações ativas dos próprios escravizados-, mas também por movimentações estrangeiras, a exemplo das empreitadas abolicionistas inglesas. Cuba, então colônia espanhola, já passava pela implementação da Lei Moret (1870), que reconhecia a liberdade de crianças recém-nascidas e de escravizados maiores de 60 anos, cenário que deixava o Brasil numa situação ainda mais complicada.
Foi sob muitos protestos, modificações, discussões e preocupações que a chamada Lei do Ventre Livre foi sancionada, em 28 de setembro de 1871. Dentre os vários artigos, o 5º parágrafo do artigo 6º afirmava que “em geral, os escravos libertados em virtude desta Lei ficam durante cinco anos sob a inspeção do Governo”. Era uma promessa que a Coroa fazia aos senhores de pessoas escravizadas que seus libertos seriam mantidos sob controle, desta vez, reforçando e explicitando a participação do Estado nessa continuidade. Anos depois, entre 1884 e 1885, as estratégias da população negra e os variados movimentos abolicionistas, animados pelas campanhas de libertação das províncias do Ceará e Amazonas e cidades como Porto Alegre e Vitória, em 1884, encontraram aderência entre os ministros de Pedro 2º.
Na falta do chicote, o cassetete
Foi nas discussões da chamada Lei dos Sexagenários que o Império legitimou juridicamente a escravidão, garantiu a indenização aos senhores de escravizados e compactuou com uma gradualidade lenta o suficiente para manter o controle da ordem escravista, apesar de prometer a libertação de escravizados maiores de 60 anos, como demonstra a historiadora Joseli Mendonça. Em meados de 1884, para tentar convencer políticos escravocratas a votar a favor do projeto dos Sexagenários, Rui Barbosa prometeu cumprir a Lei do Ventre Livre e inspecionar os libertos, atribuindo à polícia e aos juízes o poder de vigiar e punir pessoas negras libertas.
Portanto, mesmo que a população negra escravizada conquistasse a liberdade na expectativa de fugir da violência senhorial, ainda assim teria de conviver com as constantes ameaças, desconfianças e violências do poder público.
Venceu outro projeto. Mais conservador que o anterior, defendido por Rui Barbosa. A Lei dos Sexagenários, de 28 de setembro de 1885, ameaçava de prisão todas as pessoas libertas que fossem encontradas fora do município onde foram alforriadas ou que não estivessem trabalhando.
A polícia, por sua vez, era uma instituição com muitas carências. De acordo com as pesquisas do historiador estadunidense Thomas Holloway, os policiais eram pessoas de camadas humildes da população, recebiam salários baixos – semelhantes aos que eram pagos aos balconistas e artesãos -, tinham muito serviço e pouco reconhecimento. Suas condições de trabalho eram precárias, a militarização procurava disciplinar seus corpos e não faltavam problemas a serem enfrentados em suas longas e desafiadoras jornadas de trabalho.
A partir de 1885, sob o governo do conservador barão de Cotegipe, primeiro-ministro e escravocrata empedernido, a polícia ganhou grande destaque na captura de pessoas negras fugidas e mesmo na punição, pelas mais leves suspeitas, a pessoas negras livres e libertas. A cor da pele era elemento suficiente para as abordagens e conduções coercitivas. Figura proeminente da corporação e amigo íntimo de Cotegipe, João Coelho Bastos, chefe de polícia da Côrte, tornou-se popularmente conhecido como “rapa-côco”, pelo seu costume perverso de raspar a cabeça das pessoas negras que encarcerava nos presídios do Rio de Janeiro.
Em 1887, as fugas de trabalhadores escravizados se intensificaram, principalmente na província de São Paulo. Muitas dessas pessoas foram procurar auxílio na região da Baixada Santista, região onde houve as mortes conhecidas nos últimos dias. Ali, vários fugitivos procuraram reconstruir suas vidas longe das senzalas, trabalhando como estivadores, pequenos lavradores, lavadeiras, costureiras e outros ofícios corriqueiramente reservados às pessoas mais humildes. Na Bahia, estado onde ocorreu parte das mortes noticiadas na última semana, quando foi sancionada a abolição da
escravidão, não faltaram avisos às polícias do interior e da capital para que vigiassem os libertos, que procurassem regular seus batuques para não causarem “perturbações à ordem pública”. Ordem esta baseada ainda na escravidão, mesmo o Brasil não sendo mais – pelo menos legalmente – um país escravista. Abolição feita, aliás, sem amparo nenhum à população negra.
A herança
Se por um lado é nítido como nas décadas finais da escravidão as elites políticas e econômicas do Brasil procuraram manter os lugares sociais já conhecidos, baseando-se na cor da pele como elemento norteador de suspeitas e punições, por outro lado também é evidente que a polícia já carecia, desde sempre, de boas condições de trabalho, bons salários e outras assistências necessárias à condução de um bom serviço.
Não é de hoje que o conflito entre policiais e suspeitos resultam em mortes de ambos os lados, e é preciso que as autoridades responsáveis possam refletir sobre como essa política de repressão à violência também tem vitimado inocentes das duas partes. Respostas e promessas de soluções rápidas infelizmente parecem ser ilusórias e pouco eficazes.
É preciso que o Brasil assuma sua dívida histórica tanto com a população negra quanto com a segurança pública, reelaborando o enfrentamento à violência a partir de outras estratégias que não resultem na morte de mais pessoas, fardadas ou não. É necessário que o Estado aja para garantir forças de segurança menos letais, mais eficazes e socialmente engajadas na desconstrução de parâmetros estabelecidos por uma herança escravocrata e racista. Também é fundamental que o país ofereça condições de vida dignas, com possibilidades reais de ascensão social às populações menos favorecidas, marcadamente negras. Um país verdadeiramente democrático se faz com pessoas vivas.
Fonte: Coluna Itan Cruz no UOL