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Escravidão forjou o Brasil como país do café, e setor segue excludente200 anos depois

O Brasil se tornou no século 19 o maior produtor mundial de café — liderança que ostenta até hoje— às custas do trabalho de negros escravizados –
apenas posteriormente substituídos por imigrantes europeus. Passados 200 anos, o setor, um dos mais importantes da agricultura nacional, segue nas mãos de homens brancos, desde o cultivo até a indústria. Procuradas, as maiores empresas do setor não responderam a questionamentos sobre o assunto.

Café fez o Brasil conhecer a modernidade
O café foi introduzido no Brasil no século 18 por meio de mudas trazidas da Guiana Francesa para o Pará. Mas foi mais ao sul do país que o fruto encontrou solo fértil.

Décadas depois, o cultivo começou a ganhar volume na região do Vale do Paraíba, entre São Paulo e Rio de Janeiro.

No século 19, a commodity teve seu boom. As exportações se avolumavam rapidamente até que o país se tornasse o maior produtor mundial –posto que ostenta até hoje.

A prosperidade trazida pelo café fez o Brasil conhecer pela primeira vez o progresso da modernidade e uma riqueza e bem-estar material, escreveu Caio Prado Jr. Foi nesta época que o país começou a ter mais estradas de ferro e novos meios de comunicação e transportes.

Segundo o autor, o café deu origem à última das três grandes aristocracias do país, depois dos senhores de engenho e dos grandes mineradores.

Café transforma São Paulo
A cafeicultura tornou São Paulo a grande potência econômica do país e mudou a paisagem da capital, que viu palacetes serem construídos para abrigar as famílias dos barões do café.

“O grande papel que São Paulo foi conquistando no cenário político do Brasil, até chegar à sua liderança efetiva, se fez à custa do café; e na vanguarda deste movimento de ascensão, e impulsionando-o, marcham os fazendeiros e seus interesses. Quase todos os maiores fatos econômicos, sociais e políticos do Brasil, desde meados do século passado até o terceiro decênio do atual [século 20], se desenrolam em função da lavoura cafeeira”, escreveu Prado Jr. em seu clássico “História econômica do Brasil”.

Tal prosperidade tinha como fundamento uma mão de obra escrava extremamente exploratória. A alta produtividade brasileira se devia não apenas ao fato de usar pessoas escravizadas no cultivo, mas também por fazê-las trabalhar em jornadas muito mais excessivas do que em outros lugares do mundo.

Isso ajuda a explicar o fato de o Brasil ter alcançado uma produção muito maior do que seus concorrentes caribenhos, por exemplo. É o que explica o pesquisador Rafael de Bivar Marquese, doutor e professor da USP (Universidade de São Paulo), que desenvolveu estudos sobre a escravidão na economia cafeeira do Brasil.

“A média básica do Caribe era de mil pés de café por escravo. Aqui no Brasil começa com 2.000 pés. No Caribe a produtividade média desse trabalhador girava entre 200 e 300 quilos ao ano. No Brasil, no Vale do Paraíba, em meados do século 19, chegou num patamar que era de 1.200 quilos por trabalhador”, diz Marquese.

Assim o Brasil se tornou o maior exportador mundial de café. A produção brasileira foi tão grande que provocou uma queda de preços no mercado internacional, razão pela qual o país foi o grande responsável por tornar o café um produto de consumo de massa no mundo. Nascia aí o Brasil, país do café.

Elite cafeeira contribuiu para retardar abolição
Esse boom do café multiplicou a quantidade de pessoas escravizadas em São Paulo. Em 1823, havia cerca de 21 mil escravos no estado; em 1872 esse valor passou para 169 mil.

A economia cafeeira crescia com força máxima até que, em 1850, houve a proibição do tráfico negreiro, com a Lei Eusébio de Queirós.

Sem poder comprar escravizados africanos, a indústria precisou recorrer ao tráfico interprovincial. É que a maior concentração de escravos estava nos estados do Nordeste, onde eles atuavam nas fazendas de cana de açúcar, ou em Minas Gerais, por causa da mineração.

Com isso, teve início uma migração massiva de escravos dentro do país.

O movimento despertou reação dos estados do Nordeste, que viram a mão de obra minguar. Um deputado ligado às elites açucareiras de Pernambuco e da Bahia chegou a propor uma lei proibindo a prática –o que não foi aprovado.

Caio Prado Jr. destaca que esta dependência da mão de obra escrava por parte do setor cafeeiro foi uma das razões para o atraso da abolição no país.

“Esta situação desfavorável criada para o Norte será uma das causas que farão amadurecer lá mais rapidamente as ideias emancipacionistas. O Centro-Sul formará o reduto principal da reação escravocrata; e com sua grande riqueza relativa e influência política poderosa, torna-se com o tempo um dos maiores freios do movimento libertador”, escreveu Prado Jr.

Marquese, professor da USP, diz que, de fato, a elite cafeeira paulista manteve
pessoas escravizadas em suas fazendas até o último momento antes da abolição e
que, como eles detinham grande poder político, advogaram fortemente pela
manutenção do regime escravocrata até o fim.
E advogar, no caso da elite cafeeira, não significava apenas defender a causa por
meio do discurso, mas efetivamente influenciar as tomadas de decisão do governo.
Segundo o economista Celso Furtado, a aristocracia do café se diferenciava das
elites açucareira e mineira pela efetiva capacidade de alcançar os objetivos que eles
definiam como sendo de interesse da categoria.
“Mas não é o fato de que hajam controlado o governo o que singulariza os homens
do café. E sim que hajam utilizado esse controle para alcançar objetivos
perfeitamente definidos de uma política. É por essa consciência clara de seus
próprios interesses que eles se diferenciam de outros grupos dominantes anteriores
ou contemporâneos”, escreve Furtado em sua “Formação Econômica do Brasil”.
Portanto, a elite cafeeira do Brasil no século 19, além de manter-se escravocrata até
o último instante, ainda contribuiu para que a abolição tivesse ocorrido tão
tardiamente –o Brasil foi o último país do continente americano a abolir a
escravidão.
Só após a abolição é que os imigrantes europeus começaram a substituir em larga escala a mão de obra negra nas lavouras.

Brancos ainda dominam as grandes propriedade rurais
Passados dois séculos da explosão da economia cafeeira no Brasil, o setor continua nas mãos de pessoas brancas.

Em 2017, pela primeira vez o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) incluiu questões de cor e raça no Censo Agropecuário. Os números revelam que os pretos e pardos correspondem à maioria dos proprietários das micro propriedade rurais do país e são uma diminuta minoria entre os donos de grandes fazendas.

O IBGE não discrimina o tipo de produto cultivado, então não é possível obter o recorte específico para a cafeicultura. Mas pessoas do setor reconhecem que o cenário cafeeiro não difere muito dos dados gerais revelados pelo Censo.

Segundo o IBGE, 65% das propriedades com até cinco hectares são de pretos ou pardos, contra 32,4% de brancos. À medida que cresce o tamanho das fazendas, reduz a proporção de negros como proprietários.

Entre 5 e 50 hectares, 52,4% pertencem a pessoas brancas, contra 46,3% de pretas ou pardas. De 50 a 1.000 hectares, 57,1% são dirigidos por produtores brancos, contra 41,5% de pretos ou pardos.

Nas grandes áreas, a disparidade se intensifica. Em propriedades de 1.000 a 10 mil hectares, há mais que o triplo de brancos (74,7%) em relação aos pretos ou pardos (23,8%). Na última faixa da pesquisa, de mais de 10 mil hectares, a proporção é de 79% contra 18,9%.

O histórico escravocrata das fazendas cafeeiras ainda é algo que assombra o setor.

As plantações de café estão entre os segmentos com mais casos de pessoas flagradas em situação de trabalho análogo à escravidão, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego.

O cultivo de café é a quarta atividade econômica com mais empregadores na lista suja do trabalho escravo, atrás apenas da produção de carvão vegetal, da criação de bovinos para corte e de serviços domésticos.

Mas a disparidade racial não se acaba no cultivo. São poucos os negros que ocupam posições de liderança nas principais empresas de industrialização do café no Brasil.

A historiadora Dandara Renault diz que todo o movimento antirracista que se intensificou pelo mundo após o assassinato do americano George Floyd vem reverberando também no meio do café, mas de modo ainda insuficiente. “Vejo tentativas sinceras do mercado, porém ineficazes”, diz.

Essa ineficácia diz respeito a campanhas ou ações feitas para passar a imagem de que a organização está enfrentando o problema da falta de diversidade, mas isso não se espelha em ações concretas, como apoio financeiro a produtores rurais negros ou a ampliação do quadro de líderes pretos nas empresas.

A especialista em café Gi Coutinho, uma das pioneiras a tratar da questão da diversidade racial no mercado de café, diz que a primeira providência para melhorar este cenário é as empresas reconhecerem que não estão efetivamente enfrentando o problema.

A partir daí, é preciso que os executivos passem a implementar políticas de inclusão para além do discurso e da publicidade.

“Esse antirracismo precisa ser em ações, precisa ser em prática. ‘Ah, não tem gente preta para eu contratar para minha marca’. Forme gente preta, dê oportunidades para essas pessoas se formarem”, diz.

O Café na Prensa procurou as três maiores companhias do setor: a 3Corações, a JDE –dona de marcas como Pilão e L’Or– e a Melitta. Elas foram questionadas se têm ações para promover agricultores negros ou pessoas negras em outras etapas da cadeia produtiva e se há pessoas pretas nos principais cargos de liderança da organização. Nenhuma aceitou responder.

Duzentos anos após se tornar o país do café, o Brasil continua ignorando o histórico escravocrata sobre o qual construiu sua riqueza.

Fonte: Folha de São Paulo