Jovem espancado pela PM tenta vaquinha na internet para custear reparação dentária
Em janeiro, Vinícius Duarte foi agredido por dois policiais após protesto contra a Copa, teve nariz e maxilar quebrados e perdeu seis dentes; gastos com recuperação somam R$ 27 mil
“Seguraram meus braços para eu não proteger o rosto. Foram golpes e mais golpes, sempre mirando a cabeça. Chegou uma hora em que comecei a me afogar no meu próprio sangue e nem assim eles paravam de bater.” Sete meses depois de ter sido espancado pela Polícia Militar de São Paulo, Vinícius Duarte, 27 anos, não cultiva apenas más recordações: contabiliza dívidas. Teve o rosto desfigurado e agora se desdobra para pagar os gastos médicos com a recuperação. Como não tem condições de custear sozinho o tratamento dentário, resolveu começar uma vaquinha pela internet.
O jovem precisa de aproximadamente R$ 27 mil para arcar com custos de aparelhos, exames, cirurgias e implantes, em procedimentos que se arrastarão pelos próximos dois anos. Em abril, recorreu ao saite Vakinha. Já, contou com a colaboração de muita gente, mas até agora conseguiu arrecadar apenas R$ 3,2 mil – menos de 12% do total. Vinícius afirma estar “muito agradecido” pelo apoio, mas nem a solidariedade que tem recebido consegue esconder o constrangimento. “O Estado me arrancou sangue e só não me tirou a dignidade porque não conseguiu. Agora, tenho que tirar do meu próprio bolso – e do bolso das pessoas – os recursos para reparar todo esse dano.”
O semblante deformado de Vinícius ganhou páginas na internet logo depois da surra que levou da polícia. Foram reportagens na CBN, Yahoo, Vice e Estadão. O espancamento ocorreu dentro do Hotel Linson, na rua Augusta, centro de São Paulo. Após o início de uma violenta repressão policial, lá decidiram se refugiar alguns manifestantes que participavam do primeiro protesto convocado pela frente Se Não Tiver Direitos, Não Vai Ter Copa, em 25 de janeiro. Entre os ativistas estava Vinícius, músico e estudante de química industrial na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Diadema, na região metropolitana da capital.
“Mesmo naquele desespero todo, pedimos com educação para os funcionários deixarem a gente entrar. Eles deixaram. Dentro do hotel, quem não estava sendo socorrido estava ocupado socorrendo alguém”, recorda o jovem. “Alguns minutos depois, a PM começou a expulsar a imprensa. Entraram e começaram a atirar balas de borracha à queima roupa e bater a esmo nos manifestantes, inclusive em pessoas que estavam caídas no chão. Pedi calma aos policiais, quis entender porquê estavam fazendo tudo aquilo e dois deles começaram a me dar golpes um atrás do outro.”
Hoje, ao olhar-se no espelho, Vinícius já não tem de encarar lábios inchados, cicatrizes, nariz quebrado, olhos roxos, vergões na testa e feridas sanguinolentas pelo rosto: a aparência voltou ao que era antes dos intermináveis golpes de cassetete, socos e pontapés desferidos por dois policiais fortemente armados e protegidos por armaduras. Vinícius tinha apenas a roupa do corpo. “E ainda disseram que utilizaram força proporcional”, ironiza. “Ver fotos daqueles dias é como entrar num filme de terror.”
As cenas de desespero podem ter ficado para trás, mas o roteiro continua. Vinícius está na terceira fase do tratamento, que começou na noite das agressões e não deve terminar antes de 2016. Os mesmos policiais que espancaram o manifestante no Hotel Linson levaram-no em seguida para o Hospital das Clínicas. “Os médicos fizeram ultrassonografia para ver se havia danos internos e tiraram radiografias. Também passei por uma ressonância magnética”, diz, relatando a gratidão que sentiu pelos profissionais que suturaram os cortes que tinha na cabeça sem acharem necessidade de tosar a longa cabeleira. “Detectaram um coágulo intracraniano.”
Os exames concluíram ainda que Vinícius havia sofrido uma fratura no nariz e nos maxilares superior e inferior. Isso sem contar os dentes. Três deles haviam caído durante o espancamento no hotel. Outros dois, com as raízes comprometidas, seriam arrancados nos dias seguintes. A prótese dentária que o jovem tinha desde criança, resultado de um acidente domésticos, ficou imprestável: os golpes foram tão fortes que conseguiram entortar um parafuso de titânio que prendia o dente postiço à gengiva.
A primeira parte do tratamento, Vinícius conseguiu fazer pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no próprio Hospital das Clínicas. “Ao longo de dois meses, corrigiram as fraturas nos maxilares, fizeram uma plástica no nariz e removeram três dentes”, relata. “Quando terminei o tratamento, em abril, estava banguelo.” Foi quando decidiu começar a vaquinha, porque dali em diante teria que procurar um consultório particular.
Com o dentista Sérgio Yassuo Nonoyama, que atende na zona sul de São Paulo, Vinícius iniciou um tratamento de canal em dois dentes de cima que não haviam caído, mas que precisavam ser restaurados por causa das pancadas. Passou por novos exames e, em junho, ganhou um sorriso provisório. “Esses dentes que você está vendo estão presos ao aparelho”, esclarece. “São apenas estéticos.”
Os dois meses em que viveu com a mordedura desfalcada fez com que a arcada dentária se fechasse. Os ferros que agora traz na boca servirão para recuperar o espaço perdido pela queda dos seis dentes. Só então, poderá fazer os implantes, não sem antes preencher a gengiva com enxertos: a surra dos policiais também fez com que o jovem perdesse alguns pedaços do osso mandibular.
Ao contrário de outros sites de crowdfunding, o sistema escolhido por Vinícius permite sacar valores parciais das contribuições. O jovem usou o dinheiro que arrecadou até agora para arcar com os gastos do canal e com as primeiras prestações do aparelho. As despesas mais pesadas, porém, ainda estão por vir. Cada um dos seis implantes dentários deve sair por R$ 2 mil. E a manutenção mensal do dentista, pelos próximos 24 meses, em torno de R$ 8 mil.
Vinícius afirma que prestou queixa dos agressores à Corregedoria da Polícia Militar. Procurada pela RBA, porém, a corporação não quis se manifestar sobre o caso. Enquanto vai e volta do consultório, o jovem, que mora em Itaquera, na zona leste da capital, procura emprego como professor de química e toca violão para conseguir uns trocados pelas ruas. Diz ter “pena” dos homens que o espancaram e continua “constrangido”, não só pelos gastos médicos, mas por “viver num contexto social onde tantos dos meus direitos são tirados de mim e, se eu resolver lutar contra isso, não posso, porque até o direito de cobrar os meus direitos é cerceado.”
Fonte: Rede Brasil Atual