Justiça indeniza casal boliviano vítima de trabalho análogo à escravidão
Colocando fim a uma espera de 20 meses, a 10ª Vara do Trabalho de São Paulo liberou finalmente o pagamento da indenização devida aos costureiros de origem boliviana Briyan Vargas e Gabriela Chura. O casal foi encontrado por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em condições análogas à escravidão, no mês de setembro de 2020, em uma oficina na capital paulista. O caso teve ampla repercussão na imprensa e nas redes sociais.
Em reportagem publicada no começo de agosto, a coluna mostrou que uma decisão de segunda instância do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de março do ano passado havia determinado o pagamento de R$ 231 mil aos costureiros. Tecnicamente, a medida já era suficiente para que a indenização fosse paga. Porém, o processo acabou se arrastando na Justiça, apesar dos apelos da Defensoria Pública da União (DPU), responsável pela defesa do casal.
A oficina onde Briyan e Gabriela trabalhavam e moravam com toda a família prestava serviços para uma conhecida marca de roupas “plus size”, a Program. Ameaçados e privados até de alimentação pelo dono da confecção, eles eram obrigados a fazer turnos de até 16 horas diárias, em condições degradantes. Na época da fiscalização, Gabriela estava grávida da quarta filha — a criança, inclusive, nasceu ao longo do resgate realizado pelos fiscais do MTE.
“Nós ficamos muito felizes ao receber a notícia. Ainda estamos pensando no que fazer. Nossa ideia é dar um melhor futuro para nossas filhas”, comemora Briyan, ressalvando que os valores ainda não caíram efetivamente em sua conta bancária.
‘Justiça precisa proteger vítimas de violações de direitos humanos’
Os valores devidos a Briyan e Gabriela foram depositados pelo grupo empresarial dono da Program em uma conta judicial, no fim de agosto deste ano. Responsável pela liberação do dinheiro, a 10ª Vara do Trabalho de São Paulo autorizou na semana passada a transferência dos valores para Briyan e Gabriela.
A demora no pagamento da indenização levou a Defensoria Pública da União a ingressar com um questionamento no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra a 10ª Vara. A lentidão em se cumprir a decisão do TRT agravou a vulnerabilidade financeira do casal, argumentou a DPU.
“O poder judiciário, de modo geral, não está preparado para tratar de um caso desse com a urgência e a relevância que ele merece”, afirma João Dorini, defensor que acompanhou o caso.
“Só depois de todo esse tempo é que a gente conseguiu que a indenização fosse paga. O nosso sistema de Justiça, como um todo, deveria repensar as formas de reparar e proteger as vítimas dessas graves violações de direitos humanos, para que se impeça que elas acabem se tornando vítimas novamente desses mesmos contextos de exploração a que já foram submetidas”, acrescenta Dorini.
‘Situação de desespero’
Atualmente, a família de Briyan e Gabriela mora em uma casa na zona Norte de São Paulo (SP). Com o dinheiro do seguro-desemprego e de algumas doações, o casal comprou máquinas de costura para trabalhar por conta própria. Porém, eles vinham enfrentando sérias dificuldades financeiras.
“Às vezes, eles não conseguiam pagar aluguel, não tinham comida para dar para os filhos”, conta o padre Paolo Parise, da Missão Paz, organização da Igreja Católica sediada no centro da capital paulista. “A gente ajudava a pagar as contas de água e luz, arrumava cesta básica — era uma situação realmente de desespero”, complementa.
Habituado a acolher imigrantes em situação de vulnerabilidade, Padre Paolo afirma que são exceções as histórias que “terminam bem”, como a de Briyan e Gabriela. “Tem casos em que os consulados querem ‘resolver logo’, colocam [os imigrantes] no ônibus e mandam de volta para seus países de origem”, afirma o padre.
De acordo com ele, também é comum que vítimas de trabalho análogo à escravidão não sigam com denúncias e processos na Justiça por medo de retaliação dos donos das oficinas. Até familiares na terra natal dos trabalhadores chegam a ser alvo de ameaças.
“Este caso mostra como o Estado brasileiro ainda não está devidamente preparado para enfrentar condições análogas à escravidão”, afirma Renato Bignami, auditor fiscal do MTE e um dos responsáveis pela fiscalização que encontrou a família de Briyan e Gabriela.
“Fica claro que não temos políticas públicas efetivas de complementação ao resgate. Resgatar não é apenas retirar o trabalhador e lhe garantir os direitos que lhe haviam sido sonegados, mas também garantir apoio, acolhimento, requalificação profissional e reinserção no mercado de trabalho de forma correta”, complementa Bignami.
Vencida a etapa do pagamento da indenização na via judicial, Padre Paolo afirma que uma das preocupações é fornecer educação financeira à família de Briyan e Gabriela. “Inclusive, vamos propor a eles virem aqui para conversar com algumas pessoas que já deram apoio nesse sentido, para gerenciar bem”, finaliza.
Procurada, a marca de roupas Program não respondeu até o fechamento desta reportagem. O texto será atualizado caso um posicionamento seja enviado.
Fonte: Coluna Carlos Juliano Barros no UOL