Lentidão da Justiça e pobreza geram situação de reescravizados
Aos 26 anos, o maranhense Gildásio Silva Meireles vivia com a esposa e dois filhos pequenos em Pindaré Mirim (MA), onde recebeu uma proposta para trabalhar com alguns colegas da região em uma fazenda na cidade vizinha de Santa Luzia. Desempregado e endividado, ele aceitou a oferta.
“A gente foi e conversou lá com uma pessoa que era o ‘gato’ [nome popular dado ao aliciador de trabalhadores rurais]. Ele disse que estavam precisando de vaqueiro para ajudar no controle do gado, que precisavam de mão de obra, que pagavam bem e, além disso, que se a gente estivesse necessitando muito ele deixava certa quantia em casa para você já ir saldando algumas dívidas”, relembra.
Logo que chegou à propriedade em Santa Luzia, Gildásio percebeu que havia sido enganado. “O trabalho era roço de juquira [corte manual de vegetação para pasto], o alimento era só arroz e feijão misturado e a água que a gente pegava pra beber era do igarapé, onde o gado, o porco e todo mundo bebia do mesmo lugar. O alojamento era só um barracão de lona coberto, cheio de rato e cobra.”
Ele afirma que só entendeu que estava sendo explorado quando fez o “acerto” do primeiro mês e foi avisado que era ele quem estava devendo ao dono da fazenda, onde eram comercializados materiais de trabalho e alimentos não perecíveis a preços superfaturados.
Para impedir a fuga de trabalhadores, a propriedade rural era fiscalizada por funcionários armados que ameaçavam quem pretendesse fugir, conta o maranhense. “Eram ameaças constantes e pessoas com fome obrigadas a trabalhar assim mesmo, desmaiando e se queixando de dores e fraqueza”.
Fugiu. E virou mão de obra escrava novamente
Após cinco meses e meio de trabalho no local, Gildásio colocou em prática uma fuga planejada com os companheiros mais próximos para buscar socorro.
Depois de duas denúncias e quase 150 dias de espera, ele conseguiu levar até a fazenda o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, composto por auditores do trabalho acompanhados de agentes da Polícia Federal e de outros órgãos públicos. Lá, as autoridades inspecionaram o local e resgataram 14 trabalhadores que haviam permanecido na propriedade.
Hoje, com 42 anos, Gildásio é um dos 9.153 maranhenses que constam nas estatísticas oficiais como trabalhadores resgatados de condições análogas às de escravo no Brasil. O Maranhão figura como o principal estado de origem das 61.711 pessoas encontradas nessas condições desde 1995, segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas (SmartLab) e do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil (Radar SIT).
Sobre a situação dos colegas resgatados em 2007, o maranhense conta que só encontrou com alguns deles tempos depois, quando “já estavam passando por necessidade novamente e indo para outros locais, mais uma vez como mão de obra escrava”.
Já em relação aos fazendeiros fiscalizados há mais de 15 anos, Gildásio relata: “No mês passado, fui chamado para ser testemunha do caso dessa fazenda. Aí, foi adiado para o próximo mês. Então, no caso, ainda não houve o julgamento dela”. Ele prefere não revelar o nome da fazenda por medo de retaliação.
Por que são reescravizados
“Quem não trabalha com o tema pensa que houve o resgate e a situação se resolveu, mas nós sabemos como o resgate, embora seja uma política fundamental e um momento essencial, não basta para retirar essas pessoas de um ciclo de vulnerabilidades que as colocam suscetíveis a reiteradas relações abusivas de trabalho e à cooptação para o trabalho escravo”, comenta Isadora Brandão, secretária nacional dos Direitos Humanos e integrante da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae/MDHC).
A análise da secretária, exposta durante o seminário “Inclusão Social de Vítimas Resgatadas do Trabalho Análogo à Escravidão“, promovido em junho pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é corroborada pela história de quase todos os trabalhadores ouvidos pela reportagem em Monção.
Antônio Correias Campos Júnior, de 39 anos, e Adailton Lima Costa, de 40, ex-companheiros de roçado, foram resgatados juntos duas vezes em fazendas de gado no Maranhão. A primeira delas, em 2012, ocorreu em uma propriedade afastada em um povoado de Santa Inês, onde passaram seis e dez anos, respectivamente, trabalhando de domingo a domingo com condições de moradia, alimentação e trabalho degradantes.
“Depois [do primeiro resgate], recebemos cada um só três salários do governo. A indenização ainda não recebemos, não”, afirma Antônio Júnior sobre a situação dele e do colega, que aguardam há mais de dez anos pelas reparações travadas na Justiça.
Entre as principais garantias legais a trabalhadores resgatados no país está o pagamento de três parcelas do seguro-desemprego, equivalentes a um salário mínimo cada, logo após o resgate, além de indenizações requeridas por meio de processos judiciais e acordos firmados entre MPT e empresas flagradas com trabalho escravo.
“Essa visão de que as instituições cumprem o seu papel fazendo o resgate dos trabalhadores e pagando o seguro desemprego é muito limitada. Só com isso você não completa o ciclo”, avalia Jorge Souto Maior, chefe do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (USP) e desembargador do Tribunal do Trabalho da 15º Região.
O jurista afirma que, enquanto os empregadores não são devidamente responsabilizados, “o Estado mantém essas pessoas na mesma condição social e econômica que as levaram a aceitar trabalhar naquelas condições”.
Alguns meses após receberem o seguro desemprego em 2012, Ântonio e Adailton se reencontraram em outra fazenda que submetia trabalhadores a formas análogas às de escravidão, em São Francisco do Brejão (MA), onde foram resgatados pela fiscalização menos de um ano depois.
Hoje, com os “bicos” que conseguem na região, os dois ganham cerca de R$ 50 pelo dia todo de trabalho, geralmente em diárias de pedreiro, carregamentos de carga, roço de juquira, ou peneiração de areia para a construção civil. Assim, eles integram mais uma estatística do Maranhão, que abriga o maior percentual de trabalhadores informais do país, com 64,3% da população total ocupada em serviços sem carteira assinada ou registro de CNPJ. Dessas, 65,9% são pessoas negras e pardas, segundo um levantamento divulgado no ano passado pelo IBGE.
Dados divulgados em 2018 pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) e pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) indicam que, entre 2003 e 2017, 613 pessoas foram resgatadas de trabalho análogo ao de escravo ao menos duas vezes no país. Porém, conforme a OIT, esses registros estão subdimensionados.
Nos últimos anos, o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) assume não monitorar estatisticamente esses casos. Em resposta à solicitação da reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI), a pasta afirma que não existem dados oficiais sobre o número de trabalhadores resgatados mais de uma vez, pois “os sistemas disponíveis atualmente permitem cruzamento de dados em algum nível”, mas “existem inconsistências que poderiam levar a erros de resultados”.
Empregadores reincidentes
Segundo dados do próprio MTE, solicitados por meio da LAI, o fator de reincidência também está presente entre as partes responsáveis pelos casos de escravidão contemporânea.
Conforme a pasta, de 1997 a 2023, ao menos 228 estabelecimentos empresariais foram flagrados mais de uma vez — de duas a quatro ocasiões distintas — com práticas de trabalho escravo. A maioria (180) são fazendas e 48 estão no Maranhão, que é o segundo estado brasileiro com o maior número de empregadores reincidentes, atrás apenas do Pará.
Segundo a pesquisa intitulada “Raio-x das ações judiciais de trabalho escravo”, da Universidade Federal de Minas Gerais, apenas 4,2% dos empregadores acusados por trabalho escravo foram condenados em tribunais de segunda instância, onde não cabem mais recursos ao réu.
Durante o seminário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em junho deste ano, o jurista declarou: “Qual seria, então, a repercussão criminal do trabalho escravo? É próximo de zero. No sistema de Justiça Criminal brasileiro, ele funciona como uma tarrafa furada, aquela rede de pescar que tem furos e, por esses furos, só os grandes peixes fogem”.
Fonte: UOL