Artigos de menuUltimas notícias

Menstruação e trabalho: o direito a trabalhar sem dor

Poder do feminismo na América Latina permite avanços que nos fazem caminhar para uma sociedade mais justa

Por Adoración Guamán Cientista política, jurista e professora da Universidade de Valencia

Em 17 de maio, o governo da Espanha deu um passo histórico em matéria de igualdade e não discriminação. Graças ao impulso do Ministério da Igualdade encabeçado por Unidas Podemos, a Espanha terá a legislação reguladora do direito à saúde sexual e reprodutiva mais avançada da Europa. Para isso, o governo deu luz verde à tramitação normativa de uma reforma que ampliará o direito das mulheres de decidir sobre seu próprio corpo, reforçará a educação sexual, reconhecerá a gestação por substituição como uma forma de violência contra as mulheres e regulará a saúde menstrual em termos laborais.

Uma das questões mais discutidas a respeito desta reforma foi a regulação de uma incapacidade temporária derivada de regras incapacitantes, abrindo um debate nos âmbitos políticos e até mesmo sindicais sobre se a regulamentação proposta pode acabar agravando a discriminação nas contratações laborais. Assim, os efeitos da menstruação sobre a vida das mulheres têm protagonizado, pela primeira vez, talk shows e debates na mídia, rompendo o tabu sobre a questão.

Durante dias temos escutado o conjunto de dores sofridas por mulheres e pessoas que menstruam e que inclui cólicas abdominais, náuseas, fadiga, sensação de desmaio, dores de cabeça, dores nas costas e desconforto geral ou enxaquecas. Com tudo isso, uma vez ao mês e 480 vezes ao longo da nossa vida vamos trabalhar com dores incapacitantes, gerando um “presenteísmo” (trabalhar em condições subótimas) que supera em muito o absenteísmo e que impacta consideravelmente na saúde ocupacional e na produtividade das empresas.

Apesar de se tratar de uma situação que metade da população mundial pode experimentar, a saúde menstrual se mantém em um âmbito coberto por estigma, vergonha e estereótipos em quase todos os países do mundo. Nem o direito trabalhista nem as normas da previdência social contemplaram especificamente estas situações. Pelo contrário, geralmente as políticas de saúde ocupacional se desenvolvem mediante normas supostamente “neutras” (baseadas na experiência de trabalhadores masculinos e ignorando a diferente realidade da saúde das mulheres) ou políticas de saúde e segurança ocupacional que consideravam a mulher a partir de uma perspectiva protecionista, como coletivo fraco e centradas na proteção da gravidez e da maternidade. A menstruação, como situação a ser considerada per se, tem estado pouco presente nos debates jurídicos.

De fato, algumas das experiências regulatórias prévias deram maus resultados. Em particular, o Japão aprovou uma lei relativa à menstruação no trabalho em 1947; a Coreia do Sul concede às mulheres um dia de licença pela menstruação e Taiwan três; a Indonésia dois. Ademais, em algumas províncias da China foram adotadas políticas similares. Diversos relatórios apontam as dificuldades de implementação dessas normas vinculadas e sua relação com práticas discriminatórias ou mesmo violações dos direitos das mulheres, todas provavelmente relacionadas a regulamentação defeituosa e negligência empresarial. Alguns autores, em vista dos escassos ou maus resultados, qualificaram estas práticas como “sexismo benevolente”.

O debate em outros países, como França, Reino Unido e Austrália, foi aberto pelas experiências em diversas empresas que implementaram modelos de organização do trabalho compatíveis com a proteção da saúde menstrual (incluindo também os períodos de menopausa) e que relatam taxas consistentes de êxito tanto do ponto de vista do aumento da produtividade como da melhora do bem estar das pessoas que se beneficiam dessas licenças. Em abril de 2016, o Parlamento italiano debateu um projeto de lei intitulado “Estabelecimento de licença para mulheres que sofrem de dismenorreia”.

A proposta, que não foi aprovada, contemplava o direito de se ausentar do trabalho por um máximo de três dias por mês para as mulheres que sofrem uma dismenorreia que as impede de desempenhar as funções ordinárias do trabalho diário, condição que tinha que ser constatada em um atestado médico anual. Esta “licença menstrual” seria coberta pelo Estado com uma prestação igual ao salário. Além disso, alguns convênios coletivos na Espanha e na Argentina regulamentam as licenças recuperáveis pelas trabalhadoras, com pouco êxito.

A proposta espanhola é sem dúvida a mais completa e se concentra na proteção da saúde menstrual no âmbito do contrato de trabalho, como um direito dentro da saúde ocupacional. Para isso, reconhece o direito a uma incapacidade temporária especial para as mulheres com menstruações dolorosas que as incapacitam de trabalhar, sem máximo de dias como indicado no relatório médico obrigatório, às custas da previdência social, pago a partir do primeiro dia de ausência e sem requisitos de contribuição prévia. Não haverá, portanto, nenhuma carga econômica para o empregador.

Diante da regulamentação desta licença trabalhista por menstruação, argumenta-se que pôr o foco em como a menstruação afeta a capacidade de trabalho de um bom número de mulheres durante determinados dias do mês significaria reconhecer uma debilidade e poderia implicar uma reação empresarial, uma espécie de backlash (pela qual já passamos) que poderia aprofundar a preferência por contratação masculina.

Para descartar ou minimizar esta possibilidade, é necessário recordar que medidas como esta não podem ser dispositivos jurídicos isolados, mas devem ser combinadas com uma boa política de igualdade em matéria de direitos vinculados aos cuidados, e particularmente à maternidade e paternidade, baseada na corresponsabilidade; uma forte estrutura normativa antidiscriminação que sanciona as condutas sexistas no trabalho; um potente esforço pedagógico que evidencie aos empregadores que a igualdade nas empresas é um direito (e igualmente positivo para a produtividade) e um compromisso com o diálogo social para seu desenvolvimento adequado. Para que a saúde menstrual entre nas empresas, o Estado deve promover esses dispositivos e o setor empresarial deve internalizar a necessidade de protegê-la.

A proposta de regulamentos como a espanhola é, per se, um enorme passo adiante em termos jurídicos, simbólicos e culturais, que permite visibilizar e verbalizar uma realidade e uma necessidade historicamente ofuscada. Com ela, abre-se um caminho que pode ser exemplo para a América Latina, acompanhando os passos adiante na descriminalização do aborto e os processos para o reconhecimento da igualdade e proibição de discriminação nas relações de trabalho. Evidentemente, os obstáculos a superar são consideráveis em muitos aspectos. Em nossa região, a corresponsabilidade é escassa (o tempo de trabalho não remunerado ou de cuidados das mulheres é muito maior que o tempo que os homens dedicam) e isso dificulta a contratação feminina e perpetua as desigualdades.

Ademais, é bem conhecido que, na América Latina, as pessoas que trabalham sem garantias jurídicas vinculadas ao contrato de trabalho (o chamado trabalho informal) representam mais da metade da força trabalhista, o que dificulta a aplicação de medidas como a mencionada. Além disso, é igualmente evidente a permanência do estigma e o tabu em torno da menstruação, que no linguajar popular ainda é identificada como uma doença.

Felizmente, o poder do movimento feminista na região está permitindo os avanços normativos que nos fazem caminhar em direção a uma sociedade mais justa, onde ninguém tem que ir trabalhar sofrendo de dores incapacitantes e onde a menstruação faz parte da vida cotidiana, livre de estereótipos, estigmas e discriminações.

Fonte: Latinoamérica21/Folha de São Paulo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.