Mortalidade materna salta 77% em 2 anos; país retrocede à taxa de anos 1990
O pico de covid-19 em 2021 fez a mortalidade materna no Brasil crescer em patamares inéditos no século. No ano passado, em números absolutos, foram 77% mais mortes que o registrado em 2019 —antes da pandemia.
Cálculos feitos pela coluna e pelo médico obstetra Marcos Nakamura, com dados do Ministério da Saúde, apontam que a taxa de mortalidade materna do ano passado supera a casa dos 100 para cada 100 mil nascidos vivos. Isso deixa o país com um índice similar ao registrado nos anos 1990. Para verificar a taxa, divide-se o número de óbitos de grávidas e puérperas pela quantidade nascidos vivos.
No ano passado, morreram 2.796 mulheres grávidas ou puérperas, segundo dados preliminares informados pelo Painel de Monitoramento de Mortalidade Materna, do Ministério da Saúde. Foi o maior número registrado desde 1996, quando começa a série de dados disponíveis.
Procurado, o Ministério da Saúde informou que desde o início da pandemia, o governo federal repassou mais de R$ 1 bilhão a estados e municípios para apoiar ações de assistência materna e que instituiu a nova Rami (Rede de Atenção Materna e Infantil), com investimento anual de R$ 1,6 bilhão.
Óbito materno é quando há uma mulher morre durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após o término (seja com parto ou aborto) “devido a qualquer causa relacionada com ou agravada pela gravidez ou por medidas em relação a ela”.
“Esse número não nos surpreende. Quem estuda viroses que ocorrem durante a gravidez sabe dos riscos das viroses respiratórias [em gestantes]”, afirma a pesquisadora e ginecologista especialista em medicina fetal, Adriana Melo.
Segundo o painel do ministério, em 2021, 92 mil mulheres em idade fértil (entre 10 e 49 anos) morreram no país —50% a mais que em 2019. Ou seja, as mortes maternas tiveram alta maior.
Segundo Melo, isso ocorreu porque gestantes e mulheres logo após o parto ficam mais vulneráveis.
“Temos que lembrar as mudanças que ocorrem nesse período, como o aumento do volume abdominal culminando em elevação do diafragma e consequente redução do volume respiratório”, completa a médica, que foi a pioneira em relacionar o vírus da zika com os casos de microcefalia que surgiam no Nordeste em 2015.
Hoje, ela é pesquisadora e presidente do Instituto Paraibano de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto (IPesq), em Campina Grande (PB), referência nacional no tratamento de crianças com síndrome congênita associada à infecção pelo vírus zika.
Melo lembra que, em 2009, tivemos o surto de H1N1 que vitimou muitas grávidas. “Por sorte, o vírus não se espalhou pelo Brasil naquela época, mas houve uma preocupação com essa população”, afirma.
Ela conta que, desde a chegada do coronavírus ao Brasil —no início de 2020—, um sinal de alerta acendeu. “Mas infelizmente 2021 foi bem mais trágico.”
Em abril de 2020, o UOL mostrou que uma fisioterapeuta morreu no Recife, e o bebê foi retirado com vida.
Para Melo, a lei que afastava as grávidas do trabalho chegou “muito tarde [em abril de 2021], quando muitas mulheres já tinham morrido”. “Faltou também informações sobre os riscos e estímulo ao uso de máscaras”, avalia a especialista.
Os dados deixam claro que há uma relação entre a alta das mortes de grávidas e o colapso no sistema de saúde causado por uma onda de contaminação pelo coronavírus. O ápice de mortes ocorreu entre março e maio de 2021, período em que o país registrou o recorde de óbitos pela covid.
“Infelizmente o Brasil foi o campeão em mortalidade materna no mundo, e com uma ampla dianteira. E o pior, se ainda pode ter uma face pior nessa história: não contabilizamos os óbitos fetais. Essas vítimas foram invisíveis” , Adriana Melo, médica e pesquisadora.
Longe da meta
O obstetra Marcos Nakamura, do Instituto Fernandes Figueira da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e presidente da comissão nacional especializada de mortalidade materna da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), afirma que um problema grave que o país já enfrentava ficou ainda mais claro com a pandemia.
“Acredito que a principal questão foi que a gente tinha, naquele momento de 2021, problemas de assistência em partes do Brasil. Notoriamente aí tivemos a situação de Manaus, onde faltou oxigênio; mas essas situações —em menor grau— ocorreram em várias partes do país”, conta.
No Amazonas, o ápice de óbitos maternos ocorreu em janeiro e fevereiro, que coincide que o estado registrou até falta de oxigênio nos hospitais. O total de mortes de mães nesse período chegou a 50 —o que representou 42% das 120 mortes do ano.
O Amazonas foi o primeiro estado a sofrer com o pico da segunda onda da pandemia porque foi lá que surgiu a variante gama, responsável por mais de 90% das infecções no período no país.
Nakamura lembra que o país vinha conseguindo registrar reduções na mortalidade materna —ainda que tímidas—, mas o país nunca se aproximou da taxa estipulada no programa da OMS (Organização Mundial da Saúde) Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, de até 30 casos por 100 mil nascidos vivos até 2030.
Mortalidade materna (por 100 mil nascidos vivos):
- 1990 – 120
- 2000 – 73,3
- 2005 – 55,6
- 2010 – 62
- 2015 – 76
- 2016 – 64,4
- 2017 – 64,5
- 2018 – 59,1
- 2019 – 57,9
- 2020 – 71,9*
- 2021 – 107,5*
* Dados ainda não oficiais
“Em 2020, os números já estão dando 72 por 100 mil, mas o ministério ainda aplica um fator de correção. Em 2019 ele ampliou as mortes em 5%. Se usarmos o mesmo índice, a taxa de 2020 vai para 75. Em 2021 não tenho nenhuma dúvida que será perto de 110”, diz Nakamura, citando que os boletins com esses dados são publicados, em regra, a cada dois anos.
A correção citada por ele é a investigação que o Ministério da Saúde faz todos os anos sobre os óbitos não especificados. Nessa busca, a equipe tenta descobrir a causa e informar corretamente o motivo da morte. Por isso, os números e taxas em 2020 e 2021 ainda podem crescer.
Faltou estrutura
A médica Clarisse Uchoa, chefe da Unidade de Obstetrícia da Maternidade-Escola Assis Chateaubriand, da UFC (Universidade Federal do Ceará), concorda que a pandemia “escancarou a fragilidade do nosso serviço”.
Para ela, a covid-19 não só aumentou as mortes diretamente, mas também a taxa de mortalidade materna por razões não obstétricas. “Ela piora o diabetes, piora a pressão alta, ou seja, leva ao aumento da taxa de óbitos.”
Além disso, a doença gerou receio e muitas mães deixaram de buscar serviços de saúde durante os picos de casos e mortes. “Havia esse medo de sair de casa, de buscar os serviços de pré-natal. E a paciente pode nem perceber o risco ou alguma complicação porque estava em casa”, assinala.
Por fim, ela lembra que a elevada mortalidade maternidade é um problema que atinge os países em desenvolvimento e precisa de mais ações governamentais.
Quando estratificadas por raça, é possível ver que mais da metade das mortes maternas são relativas a mulheres negras (soma de pretas e pardas). Veja os dados de 2021:
- Parda – 49,7% das mortes maternas
- Branca – 35,3%
- Preta – 11,6%
- Indígena – 1,4%
- Amarela –
- 0,3% Ignorado – 1,8%
“A mortalidade materna atinge mais os países pobres e as pacientes pobres. Isso é algo extremamente triste porque é uma violação no direito da mulher grávida. Mais de 90% dos casos de mortes são evitáveis”, Clarisse Uchoa, obstetra.
Em nota à coluna, o Ministério da Saúde diz que atua para fortalecer a rede de cuidado materno e infantil no SUS para, entre outras medidas, reduzir as taxas da mortalidade materna no país.
“Desde o início da pandemia, o Governo Federal repassou mais de R$ 1 bilhão em recursos extraordinários para apoiar estados e municípios em ações estratégicas de assistência materna”, informou.
A pasta afirma ainda também instituiu a nova Rede de Atenção Materna e Infantil (Rami), “estruturada para fortalecer e ampliar o cuidado com as gestantes e bebês na rede pública, com um investimento que passa de R$ 924 milhões para R$ 1,6 bilhão por ano”.
Fonte: UOL