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Não há razão pedagógica, social, moral ou lógica para eliminar livro físico

A resolução de 2008 que dispõe sobre o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) nos lembra que o livro didático é “um direito constitucional do educando”. Atesta, ainda, “a importância da participação do professor no processo de escolha dos livros, em função do conhecimento da realidade do aluno e da escola”. Portanto, não se trata apenas de um despropósito pedagógico, uma medida ampliadora de desigualdades, antidemocrática, uma ação na contramão das tendências internacionais de controle de tempo de tela e, mais simplesmente, pura birra, a decisão do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) de extinguir a distribuição de livros didáticos impressos a partir do 6º ano.

É uma estratégia que atenta contra direitos dos estudantes e a liberdade de cátedra dos professores. Quase certamente será contestada na Justiça.

Comecemos pelo mais fácil, a birra. O PNLD é bancado integralmente pelo Governo Federal. Os livros didáticos são comprados com verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, do MEC. Ou seja, o mandatário paulista não está economizando nada com a medida. Na verdade, está gastando em duplicidade, e já faz tempo, ao produzir o próprio material pedagógico.

Produção própria que mal para em pé. Sob alegação de “coerência pedagógica”, a Secretaria Estadual tem empurrado material didático apostilado, retirando de escolas e professores a possibilidade de decidir quais os melhores recursos para suas turmas. A ideia vai de par com a concepção do professor como técnico, mero enunciador de aulas já previamente prontas, em vez de um intelectual com formação adequada para compreender as necessidades de cada disciplina e de cada aluno.

Há agravantes. Livros aprovados para o PNLD precisam passar por um controle de qualidade de uma banca de especialistas. O material próprio da Secretaria Estadual só é aprovado por ela própria.

Seu objetivo – preparar para os exames estaduais – é um contrassenso reducionista. Não se ensina porque algo vai “cair na prova”, mas porque o conteúdo é relevante para a formação de crianças e jovens.

Com suas inúmeras fragilidades, a Base Nacional Comum Curricular e a própria Reforma do Ensino Médio tentaram um cavalo de pau na tendência de “ensinar para o vestibular”. A decisão do governo paulista indica que a boiada do produtivismo e da educação guiada por rankings de avaliações já passou e não tem intenção de voltar.

As manifestações do secretário Renato Feder ficam entre o cômico e o trágico. Ao Estadão, afirmou que a aula será “uma grande TV”, e que, se precisar, o aluno “anota” o Power Point.

Feder, empresário que com ações em empresa que vende tecnologias para escolas, parece não conhecer a realidade da secretaria que dirige, ou da formação de postura de estudante, ou da interação entre estudantes e suas famílias, ou das tendências educacionais como um todo.

Sobre a secretaria: as aulas do tipo “grande TV” já foram tentadas durante a pandemia e vêm sendo a principal alternativa para a implantação da parte diversificada do Novo Ensino Médio. Em ambos os casos, os resultados em termos de presença de alunos e de aprendizagem são terríveis. Já escrevi sobre isso aqui e aqui.

Sobre a postura de estudante: “anotar slides” não é atividade trivial. Requer maturidade para entender o que é principal e o que é auxiliar (a menos que o secretário esteja pensando na cópia mecânica e sem sentido).

É procedimento de estudo e não substituto do livro didático. Não se deve desconsiderar, ainda, que infelizmente há alunos que chegam ao 6o ano sem as habilidades necessárias em termos de alfabetização. O livro é material de referência também para confirmar ou refutar hipóteses de
leitura e escrita.

Sobre o papel das famílias: o livro didático, palpável e sempre à disposição, é importante instrumento de apoio para que familiares e responsáveis ajudem os filhos na tarefa de casa. É por meio deles que se toma ciência do que está sendo ensinado e de que forma. Dizer que “tudo isso e
muito mais” estará disponível nas versões digitais é uma temeridade.

Tablets e computadores quebram (ainda mais na mão de alunos de 11, 12 anos). Sistemas operacionais ficam defasados e param de funcionar. Isso para não falar na necessidade de conexão à internet, escassa justamente nas escolas e residências mais vulneráveis.

Sobre as tendências educacionais como um todo: não há movimento mundial de substituição de livros físicos por digitais. A Suécia fez uma tentativa nessa direção e se viu obrigada a voltar atrás (detalhe: 94% dos domicílios suecos têm acesso à internet; no Brasil, são 80%).

A tendência parece ser no sentido contrário: o controle do tempo de tela e a problematização – offline e mediada por quem entende do assunto – do conteúdo veiculado nos dispositivos portáteis.

A escola é o lugar para fazê-lo. Ela pode e deve trabalhar segundo seus próprios critérios, sem aderir a modismos.

Em resumo, não consigo enxergar nenhuma justificativa, de qualquer natureza, para validar a medida adotada. Acho improvável que especialistas, professores ou estudantes sejam a favor, mas isso pouco importa: a falta de diálogo segue sendo a tônica das ações da Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo. Infelizmente a gestão pública em educação tem sido pródiga em desconsiderar o conhecimento do campo, produzindo bobagens e prejudicando quem mais precisa das escolas. A proposta de São Paulo é uma esculhambação maiúscula.

Fonte: Coluna Rodrigo Ratier no Ecoa/UOL

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