‘Não trocar receita’: médicos tentam forçar compra de remédio de marca
Em uma consulta de rotina em uma clínica popular na Praia Grande (SP), em maio, o cardiologista Humberto da Silva deu o diagnóstico de pressão alta para uma paciente. Pegou o bloco de prescrições e escreveu o nome de um medicamento. Depois, carimbou o papel oito vezes: “Não trocar a medicação”.
O remédio prescrito, um produto de marca do laboratório Biolab, custa entre R$ 50 e R$ 60. Já o genérico pode ser comprado por R$ 3. Ou ser retirado gratuitamente pelo programa Farmácia Popular, que distribui medicamentos pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
O caso de Praia Grande se repete pelo país. A reportagem ouviu relatos semelhantes de médicos, funcionários de farmácias e pacientes.
Também identificou talões de receitas médicas de profissionais de saúde em que a frase “não trocar medicação prescrita” já vem impressa por padrão, além de situações em que o médico escreve, ao lado do nome do remédio, “não autorizo a troca da medicação”.
O aviso de “não trocar” é mais que uma tentativa de influenciar o paciente a comprar o remédio de marca. Se a receita tiver essa marcação, o paciente pode até ser impedido de optar pelo genérico, a depender da farmácia e do tipo de medicamento que foi receitado, conforme verificou o UOL.
O artifício também favorece o ciclo de monitoramento das prescrições médicas pela indústria farmacêutica, revelado esta semana pelo UOL.
Via farmácias, fabricantes de remédios sabem o que cada médico receita. As informações são usadas em operações de marketing direcionadas aos profissionais de saúde, com o objetivo de tentar influenciar o que é indicado como tratamento.
Para a operação funcionar, não basta o médico prescrever: é preciso que o paciente não troque a receita. Caso contrário, o investimento da indústria farmacêutica para incentivar o médico a indicar determinado produto terá ido por água abaixo.
Ao UOL, o cardiologista que usou o carimbo em Praia Grande disse, por meio da assessoria de imprensa da clínica na qual atuava na época, que “não indica trocar medicação porque isso pode afetar o tratamento”.
“A paciente foi aconselhada a buscar uma segunda opinião profissional, caso discordasse do receituário, e, para que o médico eventualmente escolhido por ela para tal ficasse ciente sobre a recomendação, a receita foi carimbada seguidas vezes pelo profissional, de modo que a sua orientação fosse visível e transparente”, afirmou a assessoria.
A clínica, por sua vez, disse que “o profissional que atua na área tem prerrogativa exclusiva sobre o receituário”.
Leis orientam prescrição de genérico
Médicos que atendem no SUS são obrigados a prescrever o princípio ativo — que permite ao paciente adquirir qualquer opção disponível no mercado, de marca ou genérico.
Já nos consultórios particulares, o profissional pode escolher receitar apenas remédio de marca. Mas não há consenso sobre a legitimidade de usar carimbos ou anotações para restringir a substituição pelo genérico.
O Manual de Orientações Básicas para Prescrição Médica, publicado pelo Conselho Federal de Medicina em 2011 e vigente até hoje, orienta o profissional de saúde a deixar explícito na receita quando não quiser que seja feita a troca pelo genérico.
“Se [o médico] entender que o medicamento de referência é insubstituível, deverá agregar à receita uma frase com os dizeres: ‘Não autorizo a substituição’. (…) Não se expressando, estará autorizando a substituição“, Manual de Orientações Básicas para Prescrição Médica do Conselho Federal
de Medicina e do Conselho Regional de Medicina da Paraíba, 2011.
Procurado pelo UOL para comentar esse procedimento, o Conselho Federal de Medicina defendeu a autonomia do médico “para receitar as substâncias que entende necessárias para o tratamento” e também a autonomia do paciente para “optar por um medicamento genérico”.
Roberto Dias, professor de direito da FGV-SP, contesta o uso da anotação “não trocar”. Segundo ele, a Lei dos Genéricos, de 1999, visa garantir que a população tenha acesso a medicamentos mais baratos. Se o médico se recusar a prescrever genérico, o paciente pode denunciá-lo, diz.
“Isso pode indicar uma infração ética e o Conselho Regional de Medicina deve apurar por qual razão o médico prefere aquela medicação, se há razão científica para isso”, Roberto Dias, professor de direito da FGV-SP.
Em São Paulo, uma lei estadual de defesa do consumidor determina que o paciente tem o direito de “receber as receitas com o nome genérico das substâncias prescritas”.
Já médicos que dizem preferir remédios de marca, ouvidos pela reportagem, dizem suspeitar da qualidade dos genéricos. Segundo a Anvisa, a substituição do medicamento de referência pelo genérico é assegurada por testes que mostram que os tratamentos são equivalentes.
‘Melhor tratamento é o que o paciente consegue manter’
O médico de família Igor Rian, 30, atende em uma região de baixa renda em Sabará (MG). Relata que está acostumado a receber pacientes que pedem outra guia da receita, que permita comprar o genérico. Antes, foram a outro médico, que prescreveu uma marca específica, mais cara, e fez a anotação para restringir a substituição pelo genérico.
“Atendi um senhor idoso que disse que ou comia ou tomava os remédios de marca que outro médico receitou. Eu renovei a receita escrevendo o princípio ativo dos medicamentos. Desta forma, o paciente conseguiu pegá-los gratuitamente na farmácia do posto de saúde. É triste essa situação, pois dificulta a adesão ao tratamento. O melhor tratamento é o que a pessoa tem condições de manter”, Igor Rian, médico de família do SUS em Sabará (MG).
Para Rian, autoridades de saúde deveriam reforçar as recomendações para que médicos prescrevam os princípios ativos. “Mas o maior reforço para o médico é outro: o representante do laboratório batendo na porta do consultório e pedindo para o médico prescrever sua marca. Num contexto de escassez [econômica], isso é trágico.”
Em São Paulo, uma prescrição do ginecologista Obe Fainzilber viralizou em novembro. Em uma consulta em uma clínica particular no Itaim Paulista, periferia paulistana, o médico indicou um antibiótico de marca por sete dias — preço acima de R$ 50, enquanto o genérico custaria menos da metade.
Com grifos em amarelo, o médico acrescentou:
“Não autorizo a troca desta medicação. Em caso de não haver na farmácia, retornar ao médico. Nunca se oriente com farmacêutico, eles não são médicos“, Obe Fainzilber, ginecologista em São Paulo (SP).
Ofendidos, farmacêuticos reagiram e o CFF (Conselho Federal de Farmácia) se manifestou: “não podemos permitir tal desrespeito à autoridade técnica dos farmacêuticos”.
Em nota à reportagem, o CFF disse que, “pela legislação vigente, a prescrição pertence ao paciente e ele tem o livre arbítrio para se dirigir ao estabelecimento de sua confiança, buscar a marca do medicamento prescrito que desejar ou mesmo solicitar a sua substituição pelo genérico quando houver essa possibilidade”.
O UOL não conseguiu contato com o ginecologista. Em seu Instagram, Fainzilber respondeu a uma pessoa que criticou sua conduta: “Não troco medicação ética [nome dado pelos laboratórios para remédios de referência, que foram os primeiros a entrar no mercado] ou similar por opções que sabemos, você e eu que não vão beneficiar os pacientes”.
Fonte: TAB no UOL