PEC das domésticas 10 anos depois: ‘Só queria que tratassem melhor a gente’
Zélia, 49, foi demitida durante a pandemia e desde então trabalha como diarista. Débora, 50, conseguiu o primeiro emprego com carteira assinada há um ano, mas divide-se em outras três casas para complementar a renda. Sônia, 57, trabalha há quase 20 anos só com diárias e dorme alguns dias da semana na rodoviária para economizar. Tina, 63, conseguiu se aposentar recentemente pelo INSS, mas continua fazendo faxinas diariamente para sustentar a família.
Elas fazem parte do universo de quase 6 milhões de trabalhadores domésticos do Brasil. Passados 10 anos da promulgação da PEC das Domésticas, a vida desses brasileiros ainda é dura e não melhorou. A maioria continua atuando na informalidade, com uma remuneração muito baixa e sem acesso pleno a todos os direitos trabalhistas.
Como está a situação de trabalho
A situação piorou: apenas um em cada quatro trabalhadores domésticos (25,6%) tem carteira assinada. No final de 2012, 31% tinham registro em carteira. Quando a lei que igualou os direitos dos domésticos (empregadas, babás, motoristas, caseiros) aos dos demais trabalhadores entrou em vigor, o país tinha 4 milhões de domésticas sem carteira assinada e 1,8 milhão com carteira. Hoje, são 4,3 milhões na informalidade e 1,5 milhão com registro formal.
- A PEC passou a assegurar direitos trabalhistas estabelecidos pela Constituição que até então não eram aplicáveis a domésticos. Aprovada em 2013 e regulamentada em 2015, a Emenda Constitucional 72 passou a garantir pagamento de FGTS e de hora extra, seguro-desemprego, licença-maternidade, férias, 13º, jornada de oito horas diárias e indenização em caso de demissão sem justa causa.
- A crise econômica e a pandemia foram determinantes para empurrar muitas domésticas para a informalidade, transformando mensalistas em diaristas. Por outro lado, patrões ainda resistem a registrar trabalhadores domésticos e, com a chegada da PEC, uma fatia dos empregadores optou por dispensar suas empregadas para contratar diaristas e evitar o vínculo empregatício.
- Especialistas em mercado de trabalho estimam que cerca de 50% das domésticas do país atuam hoje como diaristas. Pela lei, o patrão só precisa contratar com carteira quem trabalha três dias por semana ou mais na casa. Mas em muitos casos, atuar como diarista passou a ser a opção preferida dos próprios trabalhadores ou a saída encontrada para aumentar a renda, apesar da falta de proteção da CLT e da maior insegurança sobre o futuro.
‘Salário de doméstica é muito baixo’
“O registro em carteira para mim não é interessante pelo salário, mas sim pela estabilidade. Eu posso ficar doente e ainda receber. Já [o dinheiro] como diarista compensa. Em vista do salário de muitos, eu ganho uma fortuna”, Débora Antunes, mensalista e diarista.
- Há um ano, Débora Antunes conquistou o seu primeiro registro em carteira em meio século de vida. A jornada contratada, porém, é de três dias por semana. Nos outros dias, inclusive aos sábados e domingos, ela trabalha como diarista em diferentes casas em São Paulo. No emprego formal, o salário depois dos descontos é de R$ 1.300 mais o vale transporte.
- Com as faxinas, ganha até três vezes mais. “O salário de uma empregada doméstica é muito baixo. Quem vive com R$ 1.600 no Brasil, gente?”, pergunta.
Domésticos ganham em média R$ 1.076
- Os trabalhadores domésticos ganham menos da metade do salário médio nacional. No último trimestre de 2022, a remuneração média foi de R$ 1.076 contra R$ 2.727 da média dos brasileiros ocupados, segundo o IBGE.
- Quem trabalha como diarista até consegue aumentar os ganhos, mas a renda média das domésticas que atuam na informalidade continua mais baixa. No final de 2012, trabalhadores domésticos com carteira ganhavam em média R$ 1.388, e os sem carteira, R$ 852. No 4º trimestre de 2022, esses valores ficaram em R$ 1.495 e R$ 932.
- Para a categoria de forma geral foi uma década perdida no mercado de trabalho. Os números do IBGE mostram que a renda média das domésticas quase nada avançou em termos reais (descontada a inflação). O rendimento médio dos domésticos, considerando tanto formais quanto informais, encerrou 2022 em R$ 1.076, se mantendo abaixo do patamar pré-pandemia.
- Apesar do aumento da informalidade, especialistas classificam a PEC como um importante avanço democrático, por dar dignidade à categoria. Segundo os economistas, a recessão econômica e a pandemia foram os maiores responsáveis pela queda do número de trabalhadoras com carteira assinada.
“Até 2016, vimos uma formalização do trabalho doméstico. Mas, mesmo com aumento, falávamos de pouco mais de 30% da categoria com carteira assinada. Era um movimento crescente. A partir de 2016, o movimento se inverte e é aprofundado pela pandemia“, Luana Simões Pinheiro, pesquisadora do Ipea.
“Quando o home of ice vem para ficar, as pessoas ficam mais tempo em casa e precisam menos dos empregados domésticos. O trabalhador doméstico que era mensalista passa a ser diarista sem carteira”, Bruno Imaizumi, economista da LCA Consultores.
“A PEC mexeu nos privilégios de um grupo da elite que é pouco progressista, racista e classista. São pessoas que estavam acostumadas a ter esses trabalhadores a seu dispor, e agora têm que lidar com o fato de que o trabalho tem hora para acabar, que as domésticas têm que bater ponto, vão ter férias remuneradas“, Lorena Féres da Silva Telles, doutora em História Social pela USP.
‘Fui demitida na pandemia’
- Edna Maria de Jesus, mais conhecida como Zélia, foi demitida da casa onde trabalhava havia 10 anos em São Paulo na pandemia, em 2022. Ela conta que ficou de cama porque teve febre e dor no corpo após receber a quarta dose da vacina e que mesmo assim acabou sendo dispensada por justa causa.
- Mesmo revoltada, decidiu não entrar na Justiça. Não conseguiu outro emprego com carteira assinada.
- No antigo emprego, ela recebia R$ 2.200. Agora como diarista diz estar ganhando R$ 3.000 por mês. Em compensação, passou a ter que pagar a contribuição ao INSS por conta própria.
Perfil das domésticas
- Essas mulheres em sua maioria são negras, de baixa escolaridade e de famílias de baixa renda. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 92% das trabalhadoras domésticas são mulheres, sendo 65% negras.
- O número de trabalhadores domésticos no Brasil permaneceu praticamente estável nesses dez anos. Fechou 2022 em 5,8 milhões.
- Houve um envelhecimento dessa mão de obra. Segundo o Ipea, até 1995 metade das domésticas (50,2%) tinha entre 30 e 59 anos. Em 2019, esse percentual subiu para 78%. A faixa entre 16 e 29 anos caiu de 46,9% para 12,6% no período.
- Segundo o Sebrae, há 260 mil diaristas inscritas como MEI (Microempreendedor Individual) atualmente. A contribuição mensal é equivalente a 5% do salário mínimo, mais R$ 5 de ISS. Quem contribui por conta própria ao INSS precisa pagar por mês o equivalente a 11% do salário mínimo.
- O registro de MEI (Microempreendedor Individual) garante direitos como aposentadoria por idade, auxílio-doença e salário-maternidade. Não é vista como uma solução ideal, uma vez que não se trata de uma atividade de empreendedorismo e por exigir burocracias como declaração anual de faturamento para a Receita Federal.
“As domésticas estão mais velhas, sem chance de se aposentar, com um trabalho que exige muito fisicamente delas, ainda mais quando mudamos de mensalista para diarista. A mensalista consegue dividir as tarefas ao longo da semana, a diarista faz a faxina pesada todos os dias em lugares diferentes”, Luana Simões Pinheiro pesquisadora do Ipea.
Aposentadoria é sonho distante
- Santina Rossi da Silva, a Tina, se aposentou pelo INSS, mas segue trabalhando como diarista em São Paulo. Aos 63 anos, ela tem artrite, bursite e tendinite. Mesmo assim, trabalha de segunda a sexta e cobra R$ 180 por diária. Ela diz querer carteira assinada, mas afirma que dão preferência a candidatas com no máximo 40 anos.
- Ela trabalha há quase 30 anos e ainda paga aluguel (R$ 900). Ela diz que não consegue pagar as contas da família só com o valor da aposentadoria de um salário mínimo. “Se eu não trabalhar, como é que vou comer?”, questiona.
- A empregada Sônia Batista chega a dormir na Rodoviária do Tietê para economizar. Ela mora em Taubaté, a 125 km de São Paulo, e encara duas horas de viagem de ônibus entre as cidades para poder trabalhar.
“Eu me sento nas cadeiras da rodoviária e fico por ali mesmo. Às vezes, rola assédio de algum homem que esbarra em mim. Mas, no geral, eu me sinto muito segura. Procuro ficar onde tem mulheres por perto e durmo. Aliás, cochilo, porque não dá para dormir”, Sônia Batista, diarista.
“Ter direito a férias e 13º são benefícios que ajudam a pessoa. Como diarista, eu não tenho nada disso. É uma pena que ninguém olhe para o preconceito contra a idade. Eu sinto muita raiva por ser rejeitada”, Santina Rossi da Silva, a Tina, aposentada e diarista.
Direitos incompletos
- Os representantes da categoria reivindicam direitos ainda não garantidos. Hoje, domésticas demitidas têm direito a apenas três meses de seguro-desemprego, enquanto outros trabalhadores recebem até cinco meses. O valor da parcela é restrito a um salário mínimo, ainda que a empregada doméstica tenha recebido salário maior. Para outras categorias, o teto da parcela é R$ 2.230,97
- Trabalhadores domésticos também não têm direito ao pagamento do abono do PIS. O benefício anual é concedido somente aos trabalhadores da iniciativa privada contratados por empresas.
- As domésticas também reivindicam que as convenções coletivas da categoria sejam reconhecidas pela Justiça e que sejam feitas em mais estados. A convenção coletiva das domésticas da Grande São Paulo garante, por exemplo, piso salarial de R$ 1.433,73, além da adesão a um programa de benefícios que inclui médico online e auxílio à família em caso de morte.
“Tem doméstica que trabalha 20, 30 anos sem registro. Algumas trabalham anos para o empregador e são demitidas sem receber nada. Como isso vai contar para aposentadoria?”, Janaína Mariano de Souza, presidente do Sindoméstica, sindicato que representa as domésticas da Grande São Paulo.
“A garantia de direitos para trabalhadora doméstica não é a mesma [de outras profissões] até hoje. Existia na própria lei uma discriminação. Isso foi reparado [com a PEC e lei complementar de 2015], mas ainda há resquícios de discriminação. Por exemplo, o teto para o seguro-desemprego é um salário mínimo. Isso é discriminatório porque para as outras categorias não tem esse limite”, Lys Sobral, coordenadora nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho.
“A grande questão é a lei ser aplicada. Não adianta ter lei se não tiver o incentivo, a regulação, um caráter mais coercitivo, talvez com aplicação de multas. Precisa haver formas de fazer os patrões cumprirem a lei“, Lorena Féres da Silva Telles, historiadora e pesquisadora.
‘Só queria que tratassem melhor a gente’
Ainda que direitos e remuneração importem e muito, a reivindicação de muitas é apenas por mais respeito.
Relatos de humilhações continuam sendo frequentes. A diarista Marcelle Oliveira, 34, viralizou nas redes socais após relatar que foi impedida de usar o microondas da casa para esquentar a própria marmita.
“Fui humilhada por causa de um pacote de bisnaguinhas. Ela perguntou quem tinha mandado eu fazer aquilo [abrir o pacote] sem ter recebido nenhuma ordem. Ela me disse que aquelas bisnaguinhas eram para o piquenique do esposo dela. Eu me senti humilhada, voltei para casa dizendo que não voltava lá nunca mais. E não voltei”, Débora Antunes, mensalista e diarista.
“Patrão fala: ‘eu tenho você como se fosse da família’. É mentira, isso não existe. Patrão só gosta de você enquanto você os está servindo. A partir do momento em que deu algum problema, patrão arruma outra e põe no seu lugar. Nós somos descartáveis para pessoas que têm dinheiro. A lei tem que mudar isso. Doméstica é ser humano. É uma profissão. Nós somos gente”, Edna Maria de Jesus, a Zélia, diarista.
“Eu só queria que as pessoas tratassem melhor a gente. Somos uma classe muito sofrida, principalmente quando se é negro neste país. O trabalho de doméstica nunca foi reconhecido. ‘Doméstica’ já diz… Me sinto um bicho domesticado. Essa palavra tinha que ser banida do dicionário”, Sônia Batista, diarista.
Fonte: UOL