Proteção penal de minorias e trabalho
Fabio Lobosco Silva
Entrou em vigor, no início de junho, a Lei nº 12.984, de 2014, que criminaliza condutas discriminatórias em ambiente de trabalho praticadas em desfavor de portadores de HIV ou doentes de AIDS. De acordo com os incisos II a IV, do artigo 1º, aquele que negar emprego ou trabalho; exonerar ou demitir de cargo ou emprego ou então segregar em ambiente laboral o portador do vírus em razão de sua condição, poderá ser apenado com reclusão de um a quatro anos e multa.
Tal inovação legislativa se coaduna com a tendência contemporânea de se utilizar o direito penal como ferramenta auxiliar para ações afirmativas perante o mercado de trabalho. Ela tem origem na conjugação das disposições democráticas da Constituição Federal de 1988 e do fortalecimento e quase naturalização do vigente modelo de produção, esboçado pela derrocada socialista e consolidado pelas políticas econômicas liberais da década de 90. Tais fatos compuseram uma sociedade global cada vez mais plural, desafiada em alocar dentro de uma única estrutura produtiva seus variados grupos de diferentes matizes ideológicos, políticos, etários e sexuais.
Desse modo, a Lei nº 7.716, de 1989 (de combate ao preconceito), em seu artigo 3º, determinou como crime punível com reclusão de dois a cinco anos a conduta de impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da administração direta ou indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos, ou então obstar sua promoção funcional em razão de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Em campo privado (art. 4º), aplica-se igual pena para quem, com igual motivação, negar ou obstar emprego; impedir a ascensão funcional ou obstar outra forma de benefício profissional e proporcionar tratamento diferenciado em ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário. Tal dispositivo legal também sujeitará às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências.
Em que pese a louvável iniciativa de proteção penal, tais delitos encontram algumas dificuldades práticas comuns
A Lei nº 7.853, de 1989, de apoio aos deficientes, por sua vez, tipificou como crime punível com reclusão de um a quatro anos e multa a conduta de obstar, sem justa causa, o acesso de alguém a qualquer cargo público, por motivos derivados de deficiência, bem como a de negar à alguém, por igual razão, emprego ou trabalho. Já o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2013), no artigo 100, apena com reclusão de seis meses a um ano e multa aquele que por motivo de idade obstar o acesso de alguém a qualquer cargo público ou negar emprego ou trabalho.
Em que pese a louvável iniciativa de proteção penal conferida a estes grupos, tais delitos encontram algumas dificuldades práticas comuns. A primeira delas diz respeito à dificuldade probatória para configurar a materialidade do crime, pois os métodos de seleção e avaliação de candidatos e funcionários se valem dos mais variados diagnósticos, testes e fases, permitindo camuflar atitudes discriminatórias por meio de justificativas pseudotécnicas. A segunda diz respeito à determinação de autoria delitiva. Em prestígio ao caráter personalíssimo da responsabilização penal, quem poderá responder por tais crimes não é a empresa, mas sim determinada pessoa física, integrante da estrutura empresarial. Desse modo, são autores do crime aqueles que efetivamente praticam atos discriminatórios ou determinam sua prática, o que também nem sempre é fácil de averiguar dentro de grandes companhias. Tais constatações colocam em xeque a real efetividade de tais dispositivos no cumprimento dos objetivos a que se destinam.
Por fim, por uma questão de coerência sistemática, seria prudente uma revisão das penas impostas aos crimes citados, visando sua uniformização, afinal de contas teria o legislador entendido que na seara do mercado de trabalho discriminar um idoso (reclusão de seis meses a um ano) é menos gravoso do que praticar idêntica conduta em face de um deficiente (reclusão de um a quatro anos e multa)? Ou ainda, seria preferível discriminar um portador do vírus HIV (reclusão de um ano a quatro anos) do que um negro (reclusão de dois anos a cinco anos)? Sem dúvidas resta latente a injustificável discrepância entre a valoração de tais condutas, demonstrando ou um risível ato de discriminação das diferentes práticas discriminatórias ou, é preferível acreditar, mais um exemplo da habitual desordem do processo legislativo penal pátrio.
Fabio Lobosco Silva é especialista em direito penal empresarial do Trigueiro Fontes Advogados
Fonte: Valor Econômico