Artigos de menuUltimas notícias

Saúde mental: Jovens e Mulheres desempregados estão em pior situação

IStock – imagens

Uma parceria entre o Instituto Cactus* e a Atlas-Intel permitiu realizar o primeiro levantamento geral sobre a saúde mental dos brasileiros, o Panorama da Saúde Mental. Surgiu deste levantamento o índice iCasm (Índice Instituto Cactus-Atlas de Saúde Mental) que permite perceber associações entre saúde mental e condições sociais específicas envolvendo classe, raça, orientação sexual, gênero e etnia.

O índice foi formado pelo cruzamento entre dois questionários envolvendo autodeclaração de 2.248 pessoas segmentando a atitude e a situação de diferentes segmentos, em relação a três vetores**:

  1. Confiança ou autoestima, mas também considerando situações de perda de confiança, por exemplo, marcado sentimento de inutilidade.
  2. Vitalidade ou disposição para a ação assinalados por problemas de sono, esgotamento, sensação de incapacidade de superar dificuldades e depressão.
  3. Foco ou relacionamento com outros, incluindo concentração, capacidade de enfrentar problemas, tomar decisões, sensação de satisfação no dia a dia ou felicidade na jornada vital.

Várias suspeitas e algumas surpresas aparecem neste que promete ser um ponto de comparação para os próximos anos, capaz de orientar a pesquisa e as políticas públicas na área.

Em primeiro lugar, ficou claro que, quando se trata de saúde mental, os brasileiros recorrem mais aos serviços privados (21%) do que aos públicos (16%).

Os segmentos que proporcionalmente mais procuram auxílio são, respectivamente: a população não-cisgênero, não binária, trans, assexual e pansexual (associado com menor renda), assim como o grupo com renda superior a R$ 10 mil.

Destacam-se também aqueles que sofrem com bullying e os que trabalham em serviços domésticos, predominantemente mulheres.

Essa distribuição confere com grupos historicamente vulneráveis, mas revela que há segmentos, como os desempregados, onde os fatores de saúde mental chegam em níveis críticos, mas sem cobertura de cuidado ou tratamento.

Com exceção dos indígenas, os que mais procuram serviços públicos são também os que mostram maior insatisfação com a qualidade dos serviços em saúde mental.

Diz-se que há uma epidemia de diagnósticos e uma patologização geral da sociedade, mas de fato 93% da população não recebeu qualquer diagnóstico.

Entre os que receberam algum diagnóstico predominam os usuários de serviços públicos, os de pior renda e aqueles que fazem uso do hospital geral para tratar problemas psíquicos (12%) com grande expressão para grávidas, pessoas com dor crônica, consumo de entorpecentes e brigas familiares.

Confirma-se assim a suspeita de que a população superdiagnosticada está entre as classes mais altas, que recorrem mais a serviços de cuidado psíquico com menos diagnóstico e mais tratamento, enquanto a população de baixa renda, inversamente, tem mais diagnóstico e menos tratamento.

A preocupação com a situação econômica afeta drasticamente tanto a possibilidade de problemas com a saúde mental como o investimento em cuidado e tratamento.

Sentir-se pouco atraente, pouco inteligente ou consumir álcool mais de três vezes por semana parecem condições transversais de desfavorecimento para a saúde mental. Pontuações mais baixas, envolvendo estas situações, são encontradas em mulheres jovens a procura de emprego.

Curiosamente a raça não representou um fator substancialmente diferencial para saúde mental, ainda que pretos e pardos (625) apresentem Icasm inferior aos brancos (642) e que ambos estejam atrás dos indígenas (663).

Quase 8 milhões de brasileiros com mais de 16 anos de idade —ou seja, 5% da população— faz psicoterapia há pelo menos um ano.

O número contrasta com os 19% que consultaram um psicólogo ou um psiquiatra no último ano e com os 16% que consomem continuamente medicação psiquiátrica.

Isso sugere que o recurso ao cuidado é esporádico, talvez ligado a momentos de crise, ou esparso e dependente de melhores condições de acesso, como parece ser o caso do grupo de baixa renda, viúvos e mulheres que trabalham em casa.

Neles, o caráter assistemático do suporte parece impactar de forma mais intensa. Isso é corroborado pelo fato de que idosos são o grupo etário que menos recorre à psicoterapia (2%).

Mas pode ser ponderado contra a tendência geral de que quanto menor a idade pior a saúde mental, com forte intervalo de 534 pontos para a faixa de 16 a 24 anos e de 757 pontos para o grupo com mais de 60 anos de idade.

Envelhecer no Brasil parece uma condição favorável para a saúde mental ou este índice no fundo carrega no fato de que quem pode envelhecer são aqueles que também conseguem sobreviver?

Quando tomamos a população usuária de serviços gerais de saúde, 30% —ou seja, quase o dobro da população geral— está ou esteve em psicoterapia, ainda assim, mais em serviços privados do que públicos.

Isso confirma e desdobra o peso proporcional dos sistemas privados de assistência a saúde mental.

Dos 5% que recorrem a psicoterapia, 33% gasta mais de R$ 500 por mês, só 16% gasta soma equivalente com terapias alternativas.

As jovens estudantes brancas de maior escolaridade é o grupo que mais frequenta psicoterapia.

Religião e tratamento de sofrimento psíquico
Muitas pesquisas indicam o caráter protetivo ou mitigante do sofrimento psíquico das práticas religiosas.

O Panorama da Saúde Mental no Brasil confirma este dado ao indicar que evangélicos (669) apresentam um Icasm maior do que católicos (651), crentes em religião (629) e ateus ou agnósticos (548).

Os sem religião declarada tem seis vezes mais chance de procurar psicoterapia do que evangélicos e três vezes mais do que católicos.

O resultado admite uma leitura dupla.
Pode indicar condições favoráveis de suporte e destinação do sofrimento psíquico pela comunidade religiosa ou por seu sistema crenças, mas também pode indicar a dificuldade de remeter o sofrimento psíquico a condição laica de uma determinação social ou natural, em vez de uma experiência de déficit moral, falta de fé ou aderência aos valores comunitários.

Ou seja, é possível que a maneira como religiosos se autodeclaram, percebem e interpretam o sentido do sofrimento psíquico seja diferente daqueles que concebem a natureza e a determinação do sofrimento mental de forma laica.

É possível que nos grupos mais religiosos vigore ainda a ideia de que procurar ajuda psicológica externa representa acusar uma deficiência ou uma insuficiência dos recursos comunitários, familiares e locais para enfrentar o sofrimento.

Isso vai ao encontro do fato de que agnósticos e ateus, assim como os que fazem esportes mais de três vezes por semana, recorram muito mais a psicoterapia, do que evangélicos, que apresentam uma taxa reduzida de apenas 2,3% aderentes a psicoterapia.

O levantamento permitiu também associar certas práticas com maior ou menor dificuldades em termos de saúde mental.

Por exemplo, praticar relações sexuais, encontrar amigos e fazer esportes se associam com um iCasm mais alto do que aqueles que têm brigas familiares frequentes, sofrem bullying ou sentem-se pouco atraentes, assim como consomem álcool, tabaco e entorpecentes com finalidade terapêutica.

Aqui o nexo causal é indeterminado. Não se pode saber, com precisão, se a aderência a tais práticas ou a exposição a tais situações é causa ou consequência das diferenças numéricas.

Juntando os diferentes segmentos e as diferentes amostragens da pesquisa, para formar uma espécie de retrato do perfil mais crítico para saúde mental, resguardado o grupo não-cis e não heterossexual, destacam-se as jovens mulheres entre 16 e 24 anos, solteiras, separadas ou grávidas e os homens desempregados e pais com filhos até 17 anos.

Junto com isso a falta de conexão social e de satisfação com os relacionamentos, além da preocupação financeira crônica ou aguda compõem o pior cenário possível para saúde mental.

Estima-se que tal retrato somado aumente em 50% a mortalidade, equivalendo ao consumo de 15 cigarros por dia e represente um risco para a saúde geral equivalente ao sedentarismo, a obesidade e a poluição do ar.

Tomada isoladamente a situação de desemprego talvez represente a condição de maior vulnerabilidade situacional para saúde mental, pois 72% deste grupo tem perda de interesse e prazer pela vida, 69% sente-se por baixo e deprimido, 83% com pouca energia e 68% experimenta-se como uma fracasso e uma decepção para a família, com assustadores 30% de pessoas que pensaram em se ferir ou morrer.

O segundo grupo preocupante é o dos jovens com 57% das meninas e 29% dos meninos, com números semelhantes ao dos desempregados.

Ao final e ao cabo, a desigualdade social que caracteriza o país cobra mais uma vez seus efeitos em termos de impacto sobre a saúde, desta feita na saúde mental.

Ela se replica na diferença brutal que separa aqueles que ganham até R$ 10 mil (737 pontos) em relação aos que recebem menos de R$ 2 mil por mês (576 pontos).

Um mapa geral adaptado por segmentos demográficos mostra os seguintes resultados:

  • Entidade filantrópica e de direitos humanos, sem fins lucrativos, que atua de forma independente para ampliar o debate e os cuidados em prevenção de doenças e promoção de saúde mental no Brasil, por meio de advocacy e fomento estratégico de projetos de impacto social, da qual sou membro do Conselho Consultivo.

** As três dimensões possuem pesos iguais dentro do iCasm e devem ser lidos em conjunto e de forma complementar para uma visão mais ampla acerca do bem-estar psíquico de uma população. O iCasm é calculado em uma escala entre 0 e 1000 pontos e representa a média simples dos resultados em cada uma de suas três dimensões: Confiança, Vitalidade e Foco. O iCasm pode ser estimado em nível individual e, a partir de médias, em nível de grupos e da sociedade como um todo. Saiba mais sobre a metodologia em panoramasaudemental.org

Fonte: Coluna Christian Dunker no UOL

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.