Sem computador, aluno leva 4 dias para concluir redação digital do governo Tarcísio
A determinação do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) para que alunos da rede estadual de ensino pratiquem a redação em formulários digitais, aliada à quantidade insuficiente de computadores nas 5,3 mil escolas do Estado, têm provocado demora na produção dos textos e preocupação especialmente entre estudantes que vão prestar vestibular no final do ano.
A reportagem do UOL ouviu relatos de jovens que afirmam levar até quatro aulas para terminar uma redação pela necessidade de compartilhar os equipamentos e dificuldades em acessar a internet.
O que dizem os alunos
Os mais de 3,5 milhões de estudantes da rede estadual de SP vivem tempos incertos. Mudanças na forma de aprender e de executar lições, somadas à estrutura deficitária da rede, geram apreensão sobre o futuro.
“Eu me sinto como um instrumento de pesquisa”, afirma o aluno Igor Alves Martins, de 18 anos. “O governo usa a gente para fazer testes, e agora não é hora para isso”, acrescenta.
Igor relata uma rotina maçante desde que o secretário de Educação, Renato Feder, determinou o uso de slides pelos professores e uma série de plataformas de atividades para os alunos. Ele está matriculado no 3º ano do ensino médio, na Escola Estadual Professor Cid Boucault, em Mogi das Cruzes, na região do Alto Tietê.
“Em primeiro lugar, a aula demora mais para começar, já que os computadores ficam na sala de informática. A gente se divide para ir buscar enquanto o professor tenta ligar a TV, que nem sempre funciona. Depois, temos ainda de nos revezar nas atividades exigidas porque não tem notebook ou tablet para todo mundo. E, claro, não dá tempo de fazer uma redação assim”, Igor Alves Martins, do 3º ano do ensino médio.
Alunos fazem um rascunho no papel e depois “passam a limpo” no computador, mas sempre de forma gradual. “A gente nunca começa e termina numa aula só. Para não perder o texto de um dia para o outro, tem gente que salva no e-mail ou no celular o que já escreveu”, relata Igor.
Exigência de se fazer as atividades de forma digital dificulta muito quando se trata de redação. “Na minha sala nós levamos quatro aulas para terminar um texto. Como não tem computador para todo mundo, temos de ir fazendo aos poucos, nos revezando”, declara V.A., de 13 anos, aluno do 7º ano do ensino fundamental em outra escola de Mogi.
Estudantes contam que fazem um revezamento “oficial” para usar os dois laboratórios de informática. “A orientação dos próprios professores é para fazer a redação em duas aulas e entregar do jeito que dá. Além de não ter computador suficiente, as máquinas que usam o domínio do governo são péssimas, muito lentas e nem sempre pega a internet”, afirma A.C., de 17 anos, que está no último ano na EE Joaquim Izidoro Marins, de Sorocaba, no interior.
O que diz o governo de SP
A Secretaria de Estado da Educação confirmou que não há computadores, notebooks e tablets para atender a todos. São 850 mil equipamentos para mais de 3,5 milhões de alunos — o que dá, em média, um para cada quatro alunos. “É responsabilidade do gestor escolar e dos docentes disponibilizá-los durante as aulas”, informou.
A secretaria ressaltou que oferece plano de internet de 100 mega para 96% das escolas e sinal wi-fi em 73% das salas. “O objetivo é chegar a 100% ainda neste ano”, comenta, em nota.
Sobre o número de televisores, a pasta afirmou que são atualmente 51 mil espalhados pela rede para “uso pedagógico, sem restrição”. Segundo o governo informou em maio, o Estado tem hoje 104 mil classes abertas. Portanto, o total de aparelhos de TV atende metade das salas de aula.
Sistema digital na contramão dos vestibulares
A plataforma Redação Paulista tem como meta receber dos estudantes ao menos uma redação por mês. O sistema depende da utilização de um computador ou tablet, login, senha e, claro, internet. A ferramenta é específica para a produção de textos e utiliza inteligência artificial para uma espécie de pré-correção do material que, em seguida, é enviado para análise final do professor.Continua após a publicidade
Ao exigir textos digitados, o sistema vai contra as práticas adotadas pelos vestibulares e pelo Enem, que pedem redações escritas à mão e bastante contextualizadas — condição que exige debates sobre temas atuais em sala de aula.
“O professor ficou com pouco tempo para trabalhar a redação e temos de destacar aqui que os estudantes não estão familiarizados para digitar texto com velocidade. E é diferente o desenvolvimento do raciocínio quando a escrita é no papel e quando é no computador”, Márcia Jacomini, professora do Departamento de Educação da Unifesp e pesquisadora da Repu (Rede Escola Pública e Universidade) e do Grupo Escola Pública e Democracia (Gepud).
“Não temos saúde mental para lidar com tudo isso”
Falta orientação aos alunos. Yasmin Loiola Pereira, de 18 anos, sonha em cursar Ciências Sociais em uma faculdade pública. A moradora do Capão Redondo, na zona sul da capital, afirma que não teve aula para aprender redação no modelo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio, feito em papel), para vestibulares ou mesmo sobre o modelo online de produção.
“Os professores estão fazendo o possível para ajudar a gente, mas todas essas novidades exigem muito tempo para aprender a usá-las. E a secretaria só faz liberar mais plataformas. Não temos saúde mental para lidar com tudo isso”, Yasmin Loiola Pereira, do 3º ano do ensino médio.
“Na minha escola tem computador para todo mundo, até porque muitos alunos desistiram, mas a internet é muito lenta.” O relato é de uma aluna do ensino regular e também do ensino técnico em uma escola de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista.Continua após a publicidade
V. R., de 17 anos, diz não conseguir acessar a plataforma de redação. “É tudo muito demorado, tem de ter bastante paciência para entrar no centro de mídias, que trava toda hora.”
Apesar das dificuldades enfrentadas pelos alunos, o governo cobra a utilização das plataformas, segundo a adolescente. “Tá tudo muito zoado. Quase nunca tem internet, quando tem não funciona em todos os computadores, e ainda somos muito cobrados. Toda hora o coordenador entra na escola e fala que tem de fazer porque vale nota, isso e aquilo. Mas como fazemos se não temos o mínimo de estrutura?”
Falta de diálogo, diz Upes
O novo formato de ensino, baseado em conteúdo digital, foi anunciado pelo governo paulista em abril deste ano. Após reportagem do UOL revelar erros graves de conteúdo nos slides, a Justiça de São Paulo suspendeu no dia 4 o uso de tais conteúdos até que fossem corrigidos pelo governo.
Pressão pela suspensão definitiva continua. Segundo Luiza Martins, presidente da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (Upes), os slides e plataformas novas deveriam ser suspensos para reavaliação conjunta com alunos e professores.
“Nós já fizemos vários pedidos de reunião com o secretário e sua equipe, mas essa gestão não se abre ao diálogo”, afirma a presidente da Upes. “Veja que os estudantes do terceiro ano já estão bastante prejudicados com a reforma do Ensino Médio e agora mais essa dor de cabeça. Se nada mudar, os alunos ficarão ainda mais distantes da universidade”, destaca.
Questionado, o governo Tarcísio não explicou o motivo para não atender a Upes. Também não comentou as queixas dos alunos ouvidos pela reportagem sobre as dificuldades para produzir uma redação na plataforma digital.
Em nota, a pasta apenas citou como, em tese, a ferramenta deveria funcionar: “Na plataforma de redação, o aluno, ao escrever seu texto, recebe simultaneamente sinalizações de eventuais correções gramaticais que devem ser feitas. Quando o estudante finaliza a redação, o professor recebe e realiza a correção e avaliação da estrutura do texto.”
Fonte: UOL Educação