Vigia que trabalhava 24 horas e dormia em carro é resgatado de trabalho escravo em Caçapava (SP)
MPT e MTE flagraram submissão à jornada exaustiva e a condições degradantes de trabalho e moradia; trabalhador tomava banho e cozinhava de forma improvisada, por falta de água potável e encanada
Uma inspeção realizada em conjunto pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), com apoio da Polícia Federal (PF), resultou no resgate de um trabalhador de condições análogas à escravidão na cidade de Caçapava (SP), localizada no Vale do Paraíba. A ação aconteceu no dia 13 de março de 2023.
Provocada por denúncia, a equipe de inspeção foi até um galpão industrial desativado, com área total de 7.000 m², onde antes funcionava um leilão de carros, e flagrou um vigia trabalhando informalmente, em regime de jornada abusiva e submetido a condições degradantes de trabalho e moradia.
Segundo apurado, o trabalhador iniciou a prestação de serviços de vigilância em abril de 2020, contratado pela empresa que adquiriu o estabelecimento após o encerramento das atividades pelo antigo proprietário. O vigia trabalhava por 12 horas consecutivas, trocando turno com outro trabalhador, que era mantido no mesmo regime de trabalho. Contudo, em junho de 2022 houve a demissão do então colega de trabalho, e a partir daí, ele passou a acumular todos os turnos, trabalhando 24 horas por dia, sem direito a folga, inclusive finais de semana e feriados.
Além de trabalhar com excesso de jornada, sem o devido descanso de 11 horas consecutivas entre duas jornadas de trabalho, e sem folgas semanais, o vigia também não tinha direito a férias anuais. Para conseguir um período de folga, após dois anos e meio de trabalho, ele precisou pagar do próprio bolso para colocar outro vigia em seu lugar.
Sem possibilidades de descanso, o empregado repousava dentro de um veículo do tipo Fiat Uno, já que não havia nenhum tipo de abrigo ou dormitório no galpão industrial onde trabalhava. Segundo depoimento prestado aos órgãos de inspeção, o trabalhador apenas “repousava”, haja vista a impossibilidade de dormir no interior de um carro pequeno, sem qualquer tipo de conforto, ao longo de toda uma noite por aproximadamente 10 meses. O veículo serviu, durante este período, como local de moradia para o trabalhador, uma vez que ele trabalhava por 24 horas/dia, ininterruptamente, e não lhe foi concedido um local para alojar-se, dormir e guardar seus pertences.
Em depoimento, o trabalhador informou que, mesmo sem ter formação em curso específico de segurança patrimonial, teve que enfrentar ladrões de fiação de cobre por duas oportunidades em novembro do ano passado, colocando sua vida em risco.
O empregador não fornecia água potável para consumo. O estabelecimento em que o trabalhador desenvolvia atividades de vigilância não é servido pelo sistema público de água e esgoto. O local é servido apenas por água oriunda de um poço artesiano localizado nos fundos da propriedade, e de uma cisterna de captura de águas pluviais. A cisterna que armazena as águas da chuva não é protegida contra contaminação e é totalmente inapropriada para consumo humano. O vigia contou que “a água do galpão é muita suja e contaminada, com muitas baratas dentro do reservatório”. O empregado dependia de um representante do empregador, que lhe trazia, de tempos em tempos, um tonel de plástico com capacidade para armazenar aproximadamente 200 litros de água para seu consumo. Em poucos dias, a água do tonel começava a esverdear e cheirar mal. Como alternativa, o vigia pedia para seu irmão, que reside na mesma cidade, que lhe trouxesse um galão de 20 litros de água.
Com a água que recebia o trabalhador cozinhava e se lavava. E para o seu banho não era oferecido um chuveiro com água limpa. Para limpar-se, o trabalhador improvisou um garrafão que equilibrava sobre a cabeça e despejava a água sobre o corpo. Não havia local para lavagem e secagem das roupas. Como estava submetido à jornada extenuante de trabalho, o vigia não podia sair do local, e lavava roupas de forma improvisada, se valendo de água de cisterna ou do tonel trazido pelo empregador.
Questionado sobre sua alimentação, o vigia informou que tinha receio de sair para comer em um restaurante, ou pegar uma marmita nas proximidades e ser visto por alguém da empresa, que poderia interpretar como abandono do posto de trabalho. Dessa forma, o trabalhador se via obrigado a cozinhar suas próprias refeições, pedindo mantimentos ao mercado local através do celular, que eram entregues na guarita da propriedade. O trabalhador improvisava um velho fogão elétrico de duas bocas equilibrado na janela de seu posto de guarda para aquecer ou preparar alguma refeição. Nesse local não havia pia para processamento e limpeza de alimentos e utensílios, nem assentos e mesa próprios.
“O caso em questão atende a todos os critérios necessários para o enquadramento do ilícito, que é a prática de redução de trabalhadores à condição análoga à escravidão. Observa-se a violação sistemática de direitos e princípios garantidos por lei, atingindo a dignidade e a liberdade do próprio empregado”, observa a procuradora Celeste Maria Ramos Marques Medeiros.
“A degradação vai desde a completa informalidade com que era tratado o vínculo empregatício, negando-se ao trabalhador direitos trabalhistas básicos, passando pelas péssimas condições de vivência, higiene e saúde. Por sua vez, o trabalho exaustivo fazia com que o empregado não tivesse lazer ou qualquer vida social. Ele vivia para o trabalho”, lamenta o auditor fiscal do trabalho Marco Aurélio Peres.
Os auditores fiscais do trabalho efetuaram o resgate do trabalhador de condições análogas à escravidão, garantindo a ele o direito ao recebimento de seguro-desemprego.
Em audiência com o MPT, o empregador firmou um termo de ajuste de conduta (TAC), se comprometendo a indenizar o trabalhador por danos morais individuais no valor de R$ 38.000,00, além de cumprir uma série de obrigações trabalhistas, dentre elas: abster-se de manter empregados sob jornada exaustiva e condições degradantes; garantir condições sanitárias e de conforto adequadas no ambiente de trabalho; efetuar registro em carteira de trabalho a partir da data de início da prestação de serviços (abril de 2020), garantindo ao empregado resgatado pagamento de verbas trabalhistas e previdenciárias relativas a todo o período, no momento da rescisão contratual; respeitar os limites diários de jornada de trabalho, conforme a lei. As multas por descumprimento variam de R$ 10.000,00 a R$ 20.000,00 por obrigação.
Nessa quinta-feira (30/03), o empregador garantiu o cumprimento parcial do TAC, comprovando nos autos o pagamento da indenização por danos morais individuais no valor de R$ 38.000,00. Ele havia quitado, no dia 20 de março, as verbas rescisórias devidas ao trabalhador, um total de R$ 24.771,00, e o montante relativo ao FGTS e multa, calculado em R$ 11.925,00. No total, o trabalhador foi beneficiário de um valor de R$ 74.696,00.
Fonte: MPT 15a Região Campinas