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Alternativa para a crise, cooperativismo traz melhores ganhos e pode inspirar relações de trabalho mais justas

Foi depois de mais de cinco anos de discussões que dezenas de extrativistas e agricultores dos povos da floresta da Calha Norte do Pará decidiram organizar conjuntamente os frutos do seu trabalho e conhecimento tradicional para criar uma entidade que os representasse.

Nasceu assim, em 2019, a Cooperativa Mista dos Povos e Comunidades Tradicionais da Calha Norte (Coopaflora), que tem como carro-chefe a extração de castanhas, copaíba (planta medicinal), cumaru (semente usada em cosméticos) e da pimenta indígena assisi, e também produz em menor escala itens como farinha, banana, cará e melancia que ajudam a abastecer a merenda das escolas de Oriximiná (PA).

A Calha Norte corresponde à região do baixo Amazonas no norte do Pará. Abrange uma área de cerca de 270.000 km², equivalente à dos estados de São Paulo e Alagoas juntos — unidades de conservação, terras indígenas e quilombolas ocupam 80% desse território.

A Coopaflora agrega indígenas (das etnias waiwai, hescariana e kaxuyana), quilombolas e assentados dos municípios de Oriximiná (PA), Alenquer (PA) e Nhamundá (AM). Representantes desses grupos também estão na diretoria da cooperativa, à frente das negociações dos produtos e das decisões administrativas.

Por que cooperar?

Apesar de serem vizinhos na região, quilombolas, indígenas e assentados lidavam separadamente com seus desafios até a criação da Coopaflora.

Hoje, representantes de cada grupo organizam a produção nos territórios, que é vasto e de difícil acesso, e informam à Coopaflora o que e quanto têm para vender. Com o apoio de ONGs parceiras, a cooperativa é colocada em contato com empresas interessadas nos produtos e negocia diretamente os preços.

“Muito pouco [do valor da venda], 1% talvez, fica aqui no cofre da cooperativa. O resto é tudo para pagar tributos, escritório, e o bolo maior mesmo fica com o extrativista ou agricultor”, disse o presidente da cooperativa, Rogério Pereira. Ela conta hoje com 45 cooperados, mas dá vazão à produção de um número de pessoas até dez vezes maior. Não há diferença de remuneração para cooperados e não cooperados.

Por canalizar um volume significativo de produção e contar com parceiros institucionais, a cooperativa trouxe oportunidades para as populações tradicionais da Calha Norte, como conta o coordenador de projetos do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Leo Ferreira.

“São grupos que muitas vezes estão reféns de atravessadores, de compradores locais que nem sempre praticam uma relação justa e equilibrada. [A cooperativa] sem sombra de dúvida reflete em oportunidades para o extrativista que, sozinho, ele não teria”, disse a Ecoa.

Fazer parte de uma rede também amorteceu, em parte, o impacto econômico da pandemia de covid-19 sobre os produtores. Segundo o presidente da Coopaflora, houve perdas, mas o dano teria sido ainda maior sem a ação da cooperativa, que ajudou a criar oportunidades de comercialização da produção e garantir o isolamento das comunidades.

Há também outro benefício, difícil de mensurar dada sua importância. Ao valorizar o produto extrativista e uma melhor renda para os cooperados, a cooperativa fortalece atividades que contribuem para afugentar formas de uso predatório do território: garimpo, extração ilegal de madeira e abertura de áreas para pastagem, ameaças constantes para os povos da floresta.

A gente trabalha pensando no nós. A gente não quer transformar nossa floresta em campo para criar gado, em agronegócio de soja. A gente tá garantindo uma floresta em pé como geração de renda. Não derrubamos uma castanheira para tirar o ouriço da castanha, não derrubamos um cumaruzeiro para tirar o cumaru, não precisamos matar a copaibeira para tirar o óleo da copaíba”, Rogério Pereira, presidente da Coopaflora.

Pessoas na frente do capital

Uma cooperativa é uma sociedade de pessoas constituída para prestar serviços aos associados, com uma série de distinções em relação a empresas tradicionais. Entre elas, estão a repartição dos lucros (ou sobras líquidas) entre os associados e a representação igualitária entre eles pelo voto, como diz a Política Nacional de Cooperativismo, legislação em vigor no Brasil desde 1971.

“O [aspecto] econômico não é o fim do cooperativismo, ele é o meio. O objetivo final é satisfazer uma necessidade daquele grupo de pessoas, seja emprego, renda, qualidade de vida, moradia, trabalho”, disse Camila Luconi Viana, mestre em gestão e professora de cooperativismo.

O Anuário do Cooperativismo Brasileiro 2020 contabilizou 5.314 cooperativas atuantes no país, com 15,5 milhões de cooperados — 82% deles pessoas físicas — que atuam em ramos como agropecuária, crédito, saúde, transporte, trabalho e produção de bens e serviços.

O estudo é realizado pela Organização das Cooperativas Brasileiras e só considera cooperativas que possuem registro ativo junto à entidade. O professor da Universidade Federal de Viçosa Mateus Neves estima um total de 20.000 cooperativas no Brasil, muitas delas registradas em outras entidades. Quase metade dos produtos vindos do campo no país passam por produtores rurais associados a cooperativas, segundo o IBGE.

Neves afirma que, por definição, o cooperativismo coloca as pessoas à frente do capital. Isso porque o voto de qualquer cooperado tem o mesmo peso dentro da instância máxima de decisão da cooperativa, independente da sua capacidade de produção ou poder econômico.

Todos os associados são como donos da cooperativa e, ao contrário dos acionistas de uma empresa, estão envolvidos diretamente com a atividade desempenhada por ela.

Café: benefício para o produtor e para o ambiente

A Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado de Monte Carmelo (Monteccer) reúne 152 fazendas produtoras de café no município de Monte Carmelo, em Minas Gerais. Os cafeicultores se organizaram em 1995 por necessitarem de representação institucional para adquirir maquinário e alugar espaço de armazenamento para a produção.

São muitas as cooperativas de café na região do Cerrado mineiro e do sul de Minas Gerais, estado que concentra grande parte da produção brasileira. Oseias Mendes da Costa, coordenador de projetos do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e que está em Monte Carmelo há uma década, relata um fortalecimento das cooperativas de café da região nesse período.

A Monteccer atua no beneficiamento do café cultivado pelos produtores cooperados, selecionando os melhores grãos, no armazenamento do produto e na busca do melhor comprador no momento. Os produtores pagam uma taxa por saca pelo beneficiamento, mais uma porcentagem por saca vendida, e ficam com a maior parte dos rendimentos.

“Como produtor, o relacionamento com a cooperativa é muito importante”, disse a cooperada Márcia Yoshimi Aoki Takiuti. “Ela vê o que o produtor está precisando e vai tentar fazer. Durante esses anos, já puseram em prática muitas sugestões que eu dei. Valeu muito [entrar para a cooperativa]”, diz Takiuti, que cultiva café na Fazenda Letícia, de 109 hectares, e se associou há cinco anos.

Além da modernização dos processos, outro benefício citado é a certificação ambiental. Em 2007, a Monteccer foi o primeiro grupo de cafeicultores a receber o selo Rainforest Alliance, um dos principais do mundo.

Um estudo desenvolvido pelo Imaflora em 2020 com um grupo de 34 fazendas da cooperativa mostrou que, além de registrarem emissões de carbono abaixo da média, as propriedades também sequestram carbono da atmosfera. Ou seja, graças às técnicas de cultivo empregadas, o balanço de emissões das fazendas da cooperativa foi negativo, no valor de -5,66 tCO2e (toneladas de carbono equivalente) por hectare ao ano.

Origens do cooperativismo

  • Alternativa ao capitalismoNasceu no pensamento de reformadores sociais e socialistas utópicos do século 18, como Charles Fourier
  • Trabalhadores insatisfeitosNa revolução industrial, operários ingleses eram submetidos a salários muito baixos e longas jornadas, sem direitos trabalhistas
  • Associação de tecelõesEm 1844, surgiu a primeira experiência concreta com a fundação da Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale, em Manchester, na Inglaterra.
  • Iniciativa deu certoAlém de oferecer produtos mais baratos aos trabalhadores, aumentaram seu capital e o número de associados, e definiram normas para orientar o funcionamento e a estrutura das cooperativas do futuro
  • Pioneiros resistemNo século 20, as normas foram adotadas como princípios universais pela Aliança Cooperativa Internacional e, apesar de algumas mudanças, o espírito igualitário de Rochdale permanece

Fortalecimento na adversidade

Criado como alternativa às condições de vida e de trabalho na Revolução Industrial, o cooperativismo segue ganhando força nos períodos de crise social e econômica.

“O momento de surgimento do cooperativismo em Rochdale deixa claro que o cooperativismo é um movimento que visa a dar algum respaldo social e principalmente econômico [aos trabalhadores] em momentos de crise”, diz o professor Mateus Neves.

Para a professora Camila Luconi Viana, a redistribuição de poder e a redução de intermediários promovidas pelo cooperativismo fazem dele uma tecnologia social ainda muito atual, que pode ajudar a repensar o mundo do trabalho de maneira mais ampla para construir relações mais justas e cadeias mais sustentáveis.

“A gente tem falado cada vez mais sobre ESG, sobre como avaliar as questões de meio ambiente, sociais e de governança de uma empresa. Tecnicamente, uma cooperativa já nasce com esses princípios. Ao fazer uma distribuição de renda, olhar para a educação, provavelmente ela pontuaria mais [em uma avaliação de ESG] do que uma empresa tradicional”, disse.

Apesar de ser um modelo disseminado no Brasil e no mundo, o cooperativismo ainda luta contra o desconhecimento.

“Muita gente ainda não sabe que poderia optar por este modelo de negócio mais do bem, mais sustentável na maior parte de produtos e serviços em vez de [comprar de] uma empresa tradicional“, Camila Luconi Viana, professora e cooperativista

Fonte: ECOA/UOL

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