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Duas vezes vítima, Luciana Temer lidera luta contra abuso sexual infantil: ‘única vergonha foi não denunciar’

Na primeira vez em que foi vítima de violência sexual, a diretora-presidente do Instituto Liberta Luciana Temer tinha apenas 12 anos. Estava voltando da escola, quando um assediador surgiu se masturbando no meio da rua.

A cena chocante não é exceção. Meninas com menos de 13 anos são as que mais sofrem com o abuso sexual, representando 61,3% dos casos de estupro registrados em 2021, de acordo com dados do anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que compõem o levantamento feito pelo Instituto Liberta.

Na segunda vez em que foi vítima de violência sexual, em meio a um assalto, Luciana Temer já tinha 30 anos e havia trabalhado na Delegacia da Mulher. Ainda assim, sentiu vergonha de denunciar o crime.

“Eu havia acabado de deixar o cargo de delegada. Na época, não denunciei. Senti que iria ficar exposta e a chance de pegar quem cometeu o crime era baixa”, diz sem tremular a voz. “Hoje, a única vergonha que tenho é de não ter denunciado, pois só vamos mudar a realidade com a geração de estatística e com a tomada de consciência de que a vítima não é a culpada”.

Para mudar essa situação, Luciana Temer criou o Instituto Liberta, em 2017, junto ao empresário e filantropo Elie Horn. O Instituto financia pesquisas, organiza campanhas e busca articular a sociedade para acabar com a violência sexual contra crianças e adolescentes.

“Eu sempre digo que eu não escolhi a causa, ela me escolheu. Acho que é pouco sobre mim. É sobre a tomada de consciência de um dano coletivo”.

Um Brasil de vítimas

É no Instituto Liberta que Luciana trabalha há quase seis anos e une sua experiência como advogada, professora de direito constitucional (PUC-SP), militante em direitos humanos e alguém que viveu violências na pele. Seu foco é proteger quem mais sofre com esses abusos: as crianças.

“As principais pessoas afetadas pelo abuso sexual são meninas. Essa violência contra crianças é estrutural”, diz Luciana.

“É importante lembrar que o crime de violência sexual é extremamente subnotificado e que suas principais vítimas são meninas. Só [compreendendo isso] se pode pensar em políticas públicas, que ainda não existem, para combatê-lo”, diz Luciana.

Os homens também sofrem com o problema, mas a maioria dos garotos vítimas de violência tem entre 4 e 8 anos, de acordo com o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Entre outras hipóteses, Luciana levanta a “vergonha de denunciar esse tipo de crime por parte dos homens, mesmo depois de alcançarem a maioridade”, como uma das causas da diferença de estatísticas entre homens e mulheres.

Para Luciana, o fato dos estupros afetarem mais crianças se deve a vivermos em uma sociedade machista, “adultista” (que enxerga a criança como uma posse e discrimina os jovens), e na qual reina a certeza de que não haverá denúncia: “É o único crime em que a vítima se sente envergonhada por ter sofrido uma violência. Conheço quem foi estuprado enquanto homem adulto, e prefere não denunciar.”

E engana-se quem acredita que o crime é cometido por pessoas com distúrbios ou doenças mentais: “Apenas 20% das violências sexuais contra crianças são praticadas por criminosos realmente diagnosticados como pedófilos.”, diz Luciana.

Agora você sabe

Somente 40 anos depois de ter cruzado com um homem se masturbando na rua à luz do dia, Luciana se deu conta de ter sofrido a primeira violência sexual ainda na infância.

Foi no início de 2022, quando organizava a campanha ‘Agora você sabe’, que reuniu milhares de pessoas, adultas, que sofreram violência sexual antes dos 18 anos, em uma passeata virtual.

“Eu era uma criança privilegiada, cheguei em casa chorando, contei aos meus pais e uma viatura foi tentar encontrar o homem. Mas e se isso acontece a uma garota da periferia?”, afirma a advogada.

Educação sexual?

Se o abuso contra crianças é muito mais comum do que imaginamos, e não se limita a crimes cometidos por pessoas diagnosticadas como pedófilos, qual a solução para esse problema estrutural?

Uma das saídas é investir em educação sexual, mas Luciana Temer prefere trocar o termo de ‘educação’ para ‘prevenção à violência sexual’.

A troca é necessária para alcançar setores da sociedade mais conservadores que se colocam contra a educação sexual, por associarem-na a uma sexualização precoce das crianças ou ao mito da “ideologia de gênero”.

“Sempre haverá um pensamento diferente do seu e você tem que aprender dialogar e encontrar quais são as ferramentas que favorecem ou atrapalham esse diálogo”, diz Luciana.

Uma Temer pelo diálogo

A estratégia de encontrar um termo adequado para falar de “prevenção à violência sexual” em escolas revela outro lado de Luciana: o de uma pessoa diplomática, que consegue circular tanto entre setores progressistas, quanto conservadores da sociedade com desenvoltura, buscando um consenso nas lutas pela dignidade humana.

Filha do ex-presidente Michel Temer (MDB), chamado de golpista por Lula (PT) no último debate televisivo do segundo turno das eleições presidenciais, Luciana declarou voto no candidato do PT. Foi, também, secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social no governo Haddad (PT), entre 2013 e 2016.

2016, é importante lembrar, foi o ano em que seu pai vivia o auge da tensão com o PT, após o impeachment que tirou Dilma Rousseff (PT) da presidência e colocou Michel Temer no seu lugar.

Apontada como uma das responsáveis por convencer Michel a não declarar voto em Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno, Luciana desconversa: “Essa coisa que a gente influenciou [a opinião dele] não é bem assim, é uma troca normal entre pessoas inteligentes.”

Luciana diz que a família está sempre conversando pelo WhatsApp. Para ela, o pai, apontado como um hábil articulador político ao longo das últimas décadas, é um democrata, que a ensinou a trilhar o mesmo caminho.

“Meu pai retirou o apoio [ao Bolsonaro] por convicção dele. Tenho muito orgulho de ser sua filha.”

A entrevista com Luciana Temer, 53, vai se encerrando. Se a advogada foi vítima duas vezes, agora, ela ajuda outras vítimas à frente do Instituto que criou e que faz um trabalho fundamental para proteger crianças e adolescentes no Brasil.

Falar de sua luta a mantém com um sorriso no rosto durante toda a entrevista, realizada na varanda de seu confortável apartamento. No hall de entrada, um espelho pendurado ao lado da porta traz uma frase famosa da compositora chilena Violeta Parra. Em português a tradução livre ficaria: “Obrigado à vida, que me deu tanto”.

Fonte: Ecoa/UOL

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