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Endosso tácito ao abuso na jornada de trabalho não pega bem na China de hoje

Suprema Corte do país emite um aviso prévio ao chamado esquema 996

Zhang foi contratado por uma empresa de serviços de entrega rápida, começando com um período de experiência de três meses. Mas não quis seguir a prática de fazer uma jornada de trabalho 996, ou seja, das 9 horas da manhã às 9 horas da noite, seis dias por semana. A empresa não o efetivou, alegando que Zhang havia descumprido os termos do seu período de experiência.

Num caso diferente, um outro Zhang foi contratado por uma empresa de tecnologia. Ao começar, assinou um anexo ao seu contrato em que “voluntariamente abria mão de pagamento por horas extras”. Meses depois, Zhang deixou a empresa, que se recusou a pagar pelo tempo adicional porque o funcionário havia concordado com as condições do contrato.

Agora, a Suprema Corte da China decidiu pela ilegalidade do chamado 996. Por via das dúvidas, o tribunal e o Ministério de Recursos Humanos e Seguridade Social também publicaram uma lista com dez situações consideradas ilegais.

As histórias verídicas dos Zhangs fazem parte desse compilado, publicado para servir de referência para decisões futuras. No fundo, trata-se de aviso prévio às empresas adeptas da prática.

Na China, uma legislação que proíbe as jornadas muito longas coexiste há décadas com uma cultura de trabalho que valoriza exatamente isso. Há leis que também não pegam por aqui. Esse é um dos casos clássicos.

Tecnicamente, a legislação trabalhista limita a jornada a oito horas diárias e 44 horas semanais. E permite até 36 horas de tempo adicional por mês. Apesar disso, o regime 996 é simbólico da ética do trabalho na China. A diligência, a dedicação e o trabalho duro são extremamente valorizados no país. china, terra do meio Grandes temas da China explicados e contextualizados, resumo de notícias, guia de leitura e um olhar brasileiro sobre a potência asiática.

Aos poucos, no entanto, especialmente via mídias sociais, a insatisfação dos trabalhadores com o ritmo de trabalho e o ressentimento com os resultados magros começaram a transparecer.

Mais recentemente, um movimento de jovens ganhou força nas redes: cansados de trabalhar muito e ver retornos menores, vários estariam optando por não sucumbir à pressão, às expectativas da sociedade. Melhor “ficar deitado”, na expressão que viralizou. Melhor viver com menos, moderar ambições e não entrar na disputa cruel por vagas melhores ou promoções. O governo não achou graça no clima de derrotismo.

À primeira vista, diante da clareza da legislação, pode parecer surpreendente que a Suprema Corte precisasse declarar a ilegalidade do 996. Nesse regime, um empregado pode fazer cerca de 120 horas extras por mês, o que é mais de três vezes o limite legal. No entanto, considerando quão comum é a prática —o que eu atesto da janela do meu apartamento em Pequim todas as noites—, a decisão serve para sinalizar a mudança dos tempos.

Indica, sobretudo, que o 996 perdeu o endosso tácito que tinha das autoridades. Serve de alerta para empresários que publicamente defendiam o regime como uma bênção para a China.

A novidade faz parte de um conjunto de reformas que valorizam a qualidade do crescimento —inclusive porque não é possível manter as taxas de expansão do PIB do passado. O governo precisa ter outros resultados para mostrar. Precisa também responder a novas demandas sociais, que evoluem à medida que a renda dos chineses atinge níveis mais elevados.

O anúncio da Suprema Corte constitui uma peça a mais no quebra-cabeças de políticas e regulações recentes que têm enquadrado o setor privado e acenado para demandas populares. Banir o 996 agora, novamente e de forma explícita —e por meio das histórias de Zhang, Wu e Zhou—, é algo emblemático do experimento de um capitalismo 2.0 na China.

O 996 não vai desaparecer completamente. Mas o endosso tácito ao abuso agora já não pega bem.

Fonte: Folha de São Paulo/coluna Tatiana Prazeres

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