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Maria da Penha: ‘Se não fossem as feministas, não estaria aqui hoje’

Em 7 de agosto de 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria Da Penha
Imagem: Jarbas Oliveira

Durante a madrugada, Maria acordou com um barulho alto em casa e, sem conseguir se mover, sentiu uma queimação nas costas. Ela não sabia ainda, mas tinha acabado de sofrer uma tentativa de homicídio do próprio marido que a deixou paraplégica.

O ano era 1983 e, a partir daquele momento, não só a vida de Maria da Penha Maia Fernandes mudou para sempre, como a sua luta para condenar seu agressor, o ex-marido Marco Antonio Heredia Viveros, transformou a vida das mulheres de todo o país.

Depois de um longo processo marcado pela impunidade e de ter seu caso denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) em 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha, que estabelece medidas protetivas, aumenta as penalidades para agressores e fortalece a atuação do sistema judiciário na proteção das vítimas de violência doméstica.

“Depois do silêncio brasileiro em relação às petições que a comissão enviou, eles responsabilizaram o Brasil pela tolerância com relação à violência contra a mulher. E essa medida era importante para que esses casos não continuassem na impunidade”, Maria da Penha.

Apesar da lei, os casos de violência contra a mulher só têm crescido no Brasil. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os feminicídios cresceram 6,1% em 2022, resultando em 1.437 mulheres mortas. Os homicídios dolosos de mulheres também cresceram, 1,2% em relação ao ano anterior.

As agressões em contexto de violência doméstica tiveram aumento de 2,9%, foram 245.713 casos em 2022, enquanto as ameaças cresceram 7,2%.

Depois de abrir o 1º Fórum Brasileiro de Enfrentamento à Violência Doméstica, em Fortaleza, cidade onde nasceu, Maria da Penha conversou com Universa sobre sua história e o papel que a lei que leva seu nome teve e ainda tem no combate à violência contra a mulher.

Confira a entrevista a seguir:
Universa: Há exatos 40 anos você sofria sua primeira tentativa de feminicídio. Para você, foi ali, em 29 de março de 1983, que começou sua luta contra a violência doméstica?
Maria da Penha: Não, porque a versão que o agressor deu é que tinha acontecido um assalto na nossa casa, e devido à gravidade do meu estado de saúde, passei quatro meses hospitalizada e essa versão ficou comigo.

Só que quando eu voltei do hospital, fui mantida em cárcere privado e sofri uma segunda tentativa de feminicídio através de um chuveiro propositalmente danificado, mas que na hora pensei que se tratava de um acidente casual.

Só que nesses 15 dias em que fiquei em cárcere privado, tomei conhecimento pelas empregadas que trabalhavam na minha casa de muitas coisas que aconteceram antes do dia em que fui vítima e durante a minha ausência.

Uma das empregadas me disse que ele tinha uma espingarda em casa e eu não tinha esse conhecimento. Outra viu quando ele estava, um pouco antes do crime, limpando essa espingarda no escritório.

E comecei a ficar assustada com essas coisas que fiquei sabendo. Então, minha família conseguiu, através de um advogado, providenciar minha saída de casa. E isso foi em maio de 1983.

No ano seguinte, na casa dos meus pais, fui ouvida pela polícia que, ao fazer o meu interrogatório, viu que várias informações minhas se desencontravam com as dele e com as informações dos vizinhos também.

No momento em que ele foi indiciado como autor da tentativa de homicídio, foi que tomei aquele choque, e como não tinha esse entendimento sobre violência doméstica, o movimento de mulheres me procurou e comecei a me inteirar mais sobre o que era esse crime contra a mulher.

Não tinha esse conhecimento da mesma forma que acontece hoje com muitas mulheres apesar da divulgação da Lei Maria da Penha. Essas mulheres moram em locais onde a informação é escassa e elas pensam que esse comportamento violento do homem é normal, que ele é o provedor e que a mulher tem que aceitar isso.

E como foi esse seu primeiro contato com o movimento de mulheres?
No momento em que foi descoberto que tinha sido vítima de violência doméstica, comecei a participar, com o movimento de mulheres, de alguns eventos para contar minha história e meu desespero pelo processo estar bastante lento. Ali comecei a me situar e tirar minhas dúvidas.

Demorou 19 anos e seis meses para que o meu agressor fosse preso e durante este período, ele foi julgado duas vezes e condenado duas vezes, só que saiu livre diante dos recursos da defesa. Então, no intervalo do primeiro para o segundo julgamento, estava desacreditando da Justiça.

Como é para você ainda estar na linha de frente desse debate e dessas ações de combate à violência contra a mulher depois de tantos anos?
Me sinto muito feliz de ter pessoas que me ajudaram e me ajudam a estar nesse debate porque ele tem uma dimensão muito grande até para criar políticas públicas. A Lei Maria da Penha foi fruto de um consórcio de grupos feministas e essa luta obrigou o Estado brasileiro a mudar sua legislação.

E tem muita gente que critica os movimentos feministas hoje, né?
Critica quem se sente incomodado que o movimento tem ajudado as mulheres. Aprendi muito e sou muito grata às militantes feministas, porque se não fosse por elas, não estaria hoje aqui conversando com você e nem você conversando comigo porque você também deve ter aprendido com o feminismo a fazer o que você quer na sua vida, aprendido que você poderia ter a profissão que quisesse.

O 1º Fórum Brasileiro de Enfrentamento à Violência Doméstica discutiu mudanças na Lei Maria da Penha. O que você acredita que deve ser mudado?
Se a lei que é considerada uma das três melhores leis do mundo não está refletindo aquilo que se espera dela, alguma providência precisa ser tomada.

A falta de implementação de pontos que já existem na lei também tem ocasionado o aumento do feminicídio.

Então é necessário que se esgotem os mecanismos de prevenção da violência doméstica, mas para isso é necessário que realmente as condutas existentes sejam executadas, o que não está acontecendo.

Há um constante debate no meio jurídico sobre se penas mais duras ajudam a diminuir crimes violentos. Como você acha que a Lei Maria da Penha entra nesse debate?
Olha, acho que a pena mais dura deve existir mesmo, porque se um agressor, por exemplo, já foi preso por agredir uma mulher e ele já entrou em outro relacionamento e foi preso novamente pelo mesmo motivo, acho que ele não tem condição de viver em sociedade. Então vamos aumentar essa penalização.

O último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que houve um aumento de todos os tipos de violência contra a mulher em 2022 em comparação ao último levantamento.

Como você avalia esses dados?
Esse aumento foi muito caracterizado pelo último governo que diminuiu as verbas destinadas à criação de políticas públicas para o combate à violência doméstica, o que enfraqueceu muito o apoio a essas mulheres. Também tem a questão do armamento, a liberação de mais armas para a população. Tudo isso foi uma desconstrução do que foi construído nos anos anteriores.

“Mais armas facilitam a situação dos agressores, se antes ele poderia lesionar a mulher através de agressão física, por exemplo, com uma arma de fogo ele pode matar”.

E como você acredita que esse cenário pode ser revertido?
Dando continuidade às políticas públicas e aos atendimentos com pessoas capacitadas através do 180.

Que todas as providências que precisam ser tomadas e estão colocadas na Lei Maria da Penha sejam tomadas. Também é importante a criação de novas casas da mulher brasileira.

Também é importante investir numa educação que desconstrói a cultura do machismo, que é algo que a gente ainda não vê em todas as escolas.

Ainda não existe, por exemplo, a inclusão da prateleira Maria da Penha na biblioteca em todas as escolas públicas e a capacitação ampla dos professores para identificar aquelas crianças que trazem casos de violência familiar para a escola.

Há cerca de 15 dias houve a inauguração da primeira prateleira e estamos com previsão de mais quatro inaugurações ainda esse ano.

Outro tema que abordado no 1º Fórum Brasileiro de Enfrentamento à Violência Doméstica foi a masculinidade. Qual o papel dessa discussão no combate à violência contra a mulher?
Acho importante que o combate à violência contra a mulher passe pela conscientização do homem, porque já ouvi depoimentos de locais onde existem grupos que trabalham com isso e que tem, sim, um bom resultado, locais onde os agressores que passaram por esses treinamentos reduziram suas violências.

“Há muitos elogios à Patrulha Maria da Penha, que tem desenvolvido um trabalho muito importante onde o homem é também conscientizado.”

Fonte: Universa/UOL