Brasil melhora combate à fome, mas falha em 90% de metas de desenvolvimento

A cinco anos do prazo final, um relatório apresentado hoje na Secretaria-Geral da Presidência da República aponta que o Brasil está longe de cumprir os 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) previstos na Agenda 2030, mesmo após evolução significativa no combate à fome e erradicação da pobreza. Segundo o documento, das 169 metas, apenas 12 tiveram avanço satisfatório entre 2023 e 2024. Excluindo-se as metas sem dados, o país não conseguiu atingir 90%. (veja o resultado por área ao fim).
O documento foi elaborado pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 e afirma que “a distância do país para cumprir a maioria de suas metas está aumentando”. “A análise a partir dos dados disponíveis de 2024 desvela uma década marcada por contradições abissais”, diz.
A Agenda 2030 é um plano global adotado pelas Nações Unidas em 2015, que estabelece metas como erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir prosperidade para todos.
O Relatório Luz aponta que o Brasil teve avanços significativos nos últimos dois anos, mas o panorama de 2024 revela uma “combinação de retrocessos e estagnações em áreas cruciais”, que aprofundam desigualdades históricas e colocam em risco as metas acordadas internacionalmente.
“É longa e urgente a lista de prioridades que a paz e o bem-estar social demandam no Brasil. A começar pela resolução do contínuo ataque aos povos indígenas, passando pela maior população em situação de rua dos últimos tempos e pela crescente violência urbana”, Relatório Luz.
Onde o Brasil retrocedeu em 2024
Entre os pontos citados como negativos está a violência contra as mulheres, que atingiu níveis recordes. Segundo o documento, são seis anos de retrocesso, com registros de feminicídios crescendo 4,8% em 2024.
Além disso, 37,5% das mulheres relataram ter sofrido alguma forma de violência nos últimos 12 meses, a maior prevalência desde 2017.
No campo dos direitos básicos, o acesso à moradia e a resiliência das populações vulneráveis a desastres completaram seis anos de retrocesso. A população em situação de rua segue crescendo, com aumento de 25%, chegando a quase 328 mil pessoas.
O combate ao crime organizado e ao fluxo de armas ilegais também retrocedeu, com aumento de 275% na apreensão de fuzis.
Outro ponto é que o Brasil atingiu seu pior nível histórico no Índice de Percepção da Corrupção, ocupando a 107ª posição entre 180 países.
Em 2024, a crise climática agravou ainda mais vulnerabilidades, como na tragédia do Rio Grande do Sul: 52% das pessoas autodeclaradas pretas e 40% das pardas relataram perdas econômicas, contra 26% das brancas.
Na educação, o acesso ao ensino fundamental caiu, e apenas 49,3% das crianças do 2º ano estavam alfabetizadas em 2023. O estudo cita que o analfabetismo funcional atinge três em cada dez brasileiros de 15 a 64 anos.
A degradação ambiental também se intensificou. O Brasil perdeu 3,7% de sua superfície de água em 2024 em relação à média histórica, com o Pantanal sendo o bioma mais afetado. Além disso, a liberação de agrotóxicos bateu recorde, com 663 novos registros.
Onde o Brasil parou no tempo
Um fio condutor do relatório é a “persistência das desigualdades étnico-raciais e de gênero”. Pessoas negras, indígenas e mulheres são desproporcionalmente afetadas. A mortalidade materna entre mulheres negras é o dobro da registrada entre brancas, e 82,7% das vítimas da letalidade policial são negras.
Na pobreza, 66,3% das pessoas pretas e pardas vivem em situação de empobrecimento, contra 17,7% das brancas. Na educação, a desigualdade de escolaridade entre brancos e negros, embora tenha reduzido levemente, segue expressiva (1,6 ano).
No item mercado de trabalho, “uma em cada seis mulheres negras trabalha como doméstica, um setor com alta informalidade e baixa remuneração”.
Na saúde, metas relacionadas ao combate a epidemias como HIV e tuberculose, à mortalidade por doenças crônicas e ao abuso de substâncias permaneceram estagnadas. Os casos de HIV aumentaram entre 2020 e 2023, e a mortalidade por tuberculose cresceu 31,9% no mesmo período, alcançando nível não visto desde 1999.
No trabalho, a informalidade (38,9%) segue como desafio estrutural, atingindo principalmente a população negra: 43,5% dos pardos e 41,9% dos pretos estão nessa condição.
A proporção de jovens que não estudam nem trabalham (“geração nem-nem”) também estagnou, apesar de leve melhora em 2024.
No Brasil, apesar do índice geral de registro de nascimento (99,3%), 2,7 milhões de pessoas ainda não têm certidão, com desigualdades persistentes na região Norte e entre povos indígenas, como os Yanomami.
Programas de transferência de renda combateram a fome
Os avanços mais significativos vieram na área social, impulsionados pela retomada e recomposição de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família.
A população abaixo da linha da pobreza (renda domiciliar per capita de R$ 666) caiu de 28% em 2023 para 25% em 2024, atingindo 53,5 milhões de pessoas. A parcela em extrema pobreza (até R$ 333 mensais) caiu para 6,8%, alcançando 14,7 milhões, o menor patamar desde 2012.
A insegurança alimentar moderada e severa também caiu: de 18,4% (2021-2023) para 13,5% (2022-2024).
O rendimento médio por pessoa atingiu R$ 2.020 mensais em 2024, recorde desde 2012. O Índice de Gini alcançou sua menor marca histórica (0,506), puxado pelo aumento de 17,6% na renda dos 5% mais pobres.
No cenário macroeconômico, o país registrou crescimento de 3,4% do PIB em 2024, avanço da reforma tributária e arrecadação recorde: pela primeira vez em 15 anos, a tributação cobriu 56% do orçamento da União.
Também houve retomada e fortalecimento de políticas públicas, como o acesso a métodos contraceptivos de longa duração no SUS, redução gradual da mortalidade materna, aumento de 28% no financiamento da atenção primária e melhora na cobertura de 16 das 19 vacinas do calendário.
Por fim, o Brasil reassumiu papel ativo em fóruns globais, presidindo o G20 em 2024 e impulsionando pautas como a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.
Análise
Alessandra Nilo, editora do Relatório Luz, disse que 2024 marcou uma reconstrução de políticas públicas, com recomposição de orçamentos, mas ainda insuficiente para responder a décadas de retrocessos. “Isso deu um fôlego para recuperar o que foi perdido nos últimos anos”, afirma.
Ela ressalta, no entanto, que o país está longe de atingir as metas. “O que os dados mostram é que não está havendo esforço dos governos federal e regionais para esse alinhamento”, disse.
“O nosso Congresso tem sido extremamente refratário aos temas realmente importantes para o Brasil, dominado por uma pauta política que, nos últimos anos, se tornou mais relevante que dar atenção à promoção de direitos humanos básicos. É difícil avançar nessas condições, e é muito grave o Brasil seguir longe de diminuir a desigualdade, como prevê nossa Constituição”, Alessandra Nilo.
Veja o resultado por cada objetivo (e a comparação com 2023):
ODS 1: Erradicação da Pobreza (piorou, era 1 retrocesso)
Satisfatório: 3 metas
Estagnada: 1 meta
Retrocesso: 3 metas
ODS 2: Fome Zero e Agricultura Sustentável (melhorou, tinha 1 retrocesso)
Satisfatório: 2 metas
Insuficiente: 3 metas
Estagnada: 1 meta
Ameaçada: 2 metas
ODS 3: Saúde e Bem-Estar (melhorou, eram 5 retrocessos)
Satisfatório: 1 meta
Insuficiente: 6 metas
Estagnada: 4 metas
Ameaçada: 1 meta
Retrocesso: 1 meta
ODS 4: Educação de Qualidade (melhorou, eram 6 retrocessos)
Insuficiente: 1 meta
Estagnada: 1 meta
Ameaçada: 4 metas
Retrocesso: 4 metas
ODS 5: Igualdade de Gênero (melhorou, eram 5 retrocessos)
Insuficiente: 4 metas
Estagnada: 1 meta
Ameaçada: 1 meta
Retrocesso: 3 metas
ODS 6: Água Potável e Saneamento (melhorou, eram 5 retrocessos)
Insuficiente: 2 metas
Ameaçada: 2 metas
Retrocesso: 4 metas
ODS 7: Energia Limpa e Acessível (estável)
Insuficiente: 2 metas
Estagnada: 2 metas
Ameaçada: 1 meta
ODS 8: Trabalho Decente e Crescimento Econômico (melhorou, não tinha satisfatório)
Satisfatório: 1 meta
Insuficiente: 7 metas
Estagnada: 2 metas
Sem dados: 1 meta
Retrocesso: 1 meta
ODS 9: Indústria, Inovação e Infraestrutura (piorou, era 1 retrocesso)
Insuficiente: 3 metas
Estagnada: 1 meta
Sem dados: 2 metas
Retrocesso: 2 metas
ODS 10: Redução das Desigualdades (melhorou, eram 2 retrocessos)
Satisfatório: 1 meta
Insuficiente: 4 metas
Estagnada: 2 metas
Ameaçada: 2 metas
Sem dados: 1 meta
ODS 11: Cidades e Comunidades Sustentáveis (melhorou, eram 4 retrocessos)
Satisfatório: 2 metas
Insuficiente: 7 metas
Sem dados: 1 meta
ODS 12: Consumo e Produção Responsáveis (melhorou, eram 3 retrocessos)
Insuficiente: 8 metas
Estagnada: 2 metas
Retrocesso: 1 meta
ODS 13: Ação Contra a Mudança Global do Clima (estável)
Insuficiente: 2 metas
Estagnada: 1 meta
Não se aplica: 2 metas
ODS 14: Vida na Água (piorou, eram 2 retrocessos)
Estagnada: 6 metas
Ameaçada: 1 meta
Retrocesso: 3 metas
ODS 15: Vida Terrestre (melhorou, eram 5 retrocessos)
Satisfatório: 1 meta
Insuficiente: 9 metas
Estagnada: 1 meta
Retrocesso: 1 meta
ODS 16: Paz, justiça e instituições eficazes (melhorou, eram 4 retrocessos)
Insuficiente: 5 metas
Estagnada: 3 metas
Ameaçada: 1 meta
Não se aplica: 1 meta
Retrocesso: 2 metas
ODS 17: Parcerias e Meios de Implementação (estável, já que eram 3 satisfatórios e 3 retrocessos)
Satisfatório: 1 meta
Insuficiente: 10 metas
Estagnada: 6 metas
Ameaçada: 1 meta
Retrocesso: 1 meta
Fonte: Coluna Carlos Madeiro no UOL