Líder quilombola luta há 50 anos pelos direitos das mulheres na Amazônia

Maria Nice Machado Costa é uma figura conhecida no movimento social da Amazônia. Todo mundo chama a líder quilombola de Dona Nice – o “Dona” mostra o respeito pela sua trajetória de luta em defesa dos direitos das mulheres.
“Eu represento todas as mulheres do mundo – negras, brancas, indígenas, quilombolas – e também os homens que respeitam as mulheres.”
Filha de um líder comunitário, ela estava sempre com ele e foi se integrando à luta pelo direito à terra e entendeu que as mulheres precisavam abrir espaços de participação e de luta. Nem que para isso ela tenha feito muita “reunião debaixo de pé de pau”, escondida, na época da ditadura.
Atualmente, o reconhecimento a leva para fora do país, representando os povos da Amazônia. Para ela, a luta pela ampliação da participação das mulheres ainda é necessária e urgente.
“A devastação não é feita por mulheres. A mulher sempre foi defensora da terra, da floresta, da água e da família. Ela tem força e coragem, precisa é de liberdade e informação”.
Abaixo, a entrevista de Dona Nice a Ecoa.
Como a senhora começou a atuar nos movimentos sociais?
Eu era nova; quem era mais dessa luta era meu pai. Comecei aos 13 anos, no grupo de jovens da Igreja Católica. Fiz um curso chamado Ação Comunitária, que ensinava a viver na terra e conviver com toda a caça e toda a raça. Depois fui me envolvendo com outros grupos e cheguei à Comissão Pastoral da Terra, que preparava o povo pra viver na zona rural, pra não inchar a cidade e poder trabalhar com dignidade.
A senhora começa sua luta durante a ditadura. Como foi esse início?
Aos 18 anos eu já tinha mais coragem. Criamos o Mama — Movimento da Mulher da Amazônia — para unir mulheres indígenas e extrativistas. Eu fazia reunião debaixo de pé de pau, escondida, porque fazendeiro mandava matar. Antes mesmo do movimento das quebradeiras, eu já lutava para que as mulheres tivessem documento próprio, carteira de trabalho, identidade.
Quando essa luta se encontra com as quebradeiras de coco?
O Maranhão era uma das maiores áreas de produção de babaçu. Nossa companheira Raimunda Silva começou a articular o trabalho com as mulheres, porque na carteira do marido, a mulher era só dependente. Fomos enfrentando isso. Depois, vimos que as quebradeiras eram as que mais sofriam. No começo, éramos 70, viramos 300, depois 3 mil, até criar o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco. Em 2000, conseguimos ter personalidade jurídica. Fui a “testa de ferro” pra mostrar que quebradeira é extrativista e faz parte da luta ambiental. Não foi fácil, mas aprovamos. Fui secretária de Mulheres no primeiro mandato e estou no segundo. Criamos uma rede internacional dos biomas pra fortalecer as mulheres. E de quatro em quatro anos temos a Marcha das Margaridas, um dos maiores movimentos do país.
O que a Marcha das Margaridas representa para a senhora?
É um espaço de força. Na última, foram 160 mil mulheres organizadas e mais de 100 de outros países. Muitas que nunca tinham participado hoje são lideranças. Eu mesma já fui a Portugal, à África e agora vamos para a Itália, fazer intercâmbio em museus — lugares que contam nossa história de luta.
Quando a senhora fala em luta, luta por quê?
Primeiro, por uma terra viva. Sem terra, não tem água, nem floresta, nem gente. Hoje, 80% do nosso povo ainda não tem terra. E, sem ela, não há educação, nem saúde, nem moradia digna. A pessoa mais pobre é a que não tem terra pra declarar que vive nela. Nosso trabalho é organizar o povo e mostrar que a mudança começa daí. Da terra vem a água, a floresta e a vida.
As mulheres ainda enfrentam barreiras? Como ampliar presença e poder?
Temos que trazer as mulheres da base para os movimentos com oficinas e congressos. No meu município, mais de 10 mil trabalham na nossa organização. Hoje, são mais mulheres do que homens. Quando comecei, eram 70. Hoje, temos cerca de 200 movimentos com mulheres organizadas em todo o Brasil. A devastação não é feita por mulheres. A mulher sempre foi defensora da terra, da floresta, da água e da família. Ela tem força e coragem, precisa é de liberdade e informação.
O que mais mudou desde o início da sua militância?
Quando comecei, mulher não era deputada, juíza, advogada ou representante. Era só homem. Fiz muitas reuniões debaixo de árvore, até reunir 100 mulheres por município. Quebramos essa barreira.
O que a senhora quer ver no futuro pra dizer “conseguimos”?
Quero ver todas as mulheres vivendo em seus territórios, com moradia, saúde e educação de qualidade. Que os filhos possam ser advogados, professores, médicos dentro da comunidade. Que o babaçu e outras riquezas sejam valorizados, não destruídos. Ainda faltam titulações de quilombos, terras indígenas e reservas. Enquanto isso não acontecer, vamos continuar sofrendo. Meu sonho é ver escola de qualidade no campo, para a juventude não ser despejada nas cidades, onde perde cultura e morre. Extrativismo é palavra-chave de vida: produzir, preservar e permanecer no nosso lugar, com dignidade e renda justa.
Tem um recado final?
Quero dizer para todas as mulheres extrativistas e de todos os biomas: vamos pra luta, vamos levar uma boa discussão para a COP30. A preservação passa pela demarcação dos territórios, moradia digna, educação e trabalho. Quando isso acontecer, acaba o conflito e a morte de trabalhadores, mulheres e jovens.
Eu represento todas as mulheres do mundo – negras, brancas, indígenas, quilombolas – e também os homens que respeitam as mulheres. Somos guardiões da floresta, da casa, da família e do território. Somos guardiões do Brasil e do mundo.
