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Se maternidade fosse paga, salário de mãe seria maior que de médico do SUS

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Imagem: Arte UOL

Uma mãe que cuida da criança e da casa em tempo integral é costumeiramente vista como alguém que não trabalha. Mas, na prática, ela exerce as funções de babá, empregada doméstica, cozinheira e, em alguns casos, motorista.

Também pode ser animadora de festas, secretária, passeadora de pets e contabilista (quando administra as finanças da casa).

No mês passado, a norte-americana Allison Roozen viralizou com um vídeo no TikTok em que contava o que aconteceu após a morte da melhor amiga, em 2020. Ela era dona de casa e tinha um filho. O marido contratou duas babás, uma faxineira e uma equipe de jardinagem para exercer as funções da esposa morta.

“Não consigo parar de pensar, agora que ela se foi, no número de pessoas que foram contratadas para substituí-la”, diz Allison, no vídeo. “[O ex-marido] ainda pede a ajuda de vizinhos e avós, além de ter uma namorada que faz o trabalho emocional. Agora eles têm uma aldeia, mas antes tinham uma mãe que fazia tudo.”

Universa consultou a economista Brena Paula Magno Fernandez, professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e coordenadora do Núcleo de Estudos em Economia Feminista, para fazer a seguinte estimativa: qual deveria ser o salário no mercado formal para uma mãe que se dedica integralmente ao cuidado dos filhos e da casa em uma capital como São Paulo? No mínimo R$ 7.392, calcula a economista — ela reforça que se trata de um valor aproximado, pois o tema é complexo e não existe uma metodologia consolidada para o cálculo.

Isso é mais do que o valor médio dos salários oferecidos para médicos do SUS (Sistema Único de Saúde): R$ 6.608,98 para uma carga de 20 horas semanais de trabalho, conforme levantamento feito em 2022 pelo Conselho Federal de Medicina em editais de concursos públicos. Ressalte-se, no entanto, que mães trabalham bem mais do que cinco horas diárias.

Para chegar ao valor de R$ 7.392, foram consideradas diferentes funções desempenhadas por uma mãe no dia a dia: um salário mínimo para uma trabalhadora doméstica, que cuidaria da limpeza da casa, lavagem das roupas e preparo dos alimentos; dois salários mínimos para cobrir dois turnos de babás; uma profissional folguista que assumisse serviços como conduzir a criança a pediatra, escola, casa de amigos e outras atividades (eventuais cursos de inglês e natação); e, por fim, 40% de adicional de custos de encargos sociais e trabalhistas previstos na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

É uma conta conservadora: os salários considerados foram os mínimos previstos por lei.

Existem dois métodos, ensina a economista, para estimar o valor de uma produção não-mercantil (sem fins lucrativos). O primeiro considera a quantidade de horas necessárias para a realização das tarefas. O segundo se baseia no preço pago no mercado formal por cada um dos serviços — este foi o método utilizado para a reportagem de Universa.

Nesta equação, diz a economista, “o desafio é lidar com o caráter fragmentado, intermitente, imediato e pessoal do trabalho doméstico”. Afinal, como explica, a função da mãe é “uma mistura de cozinheira, faxineira, arrumadeira, lavadeira, passadeira, babá, motorista e governanta”.

“Não é simples contratar estes serviços por pequenos períodos e em horários aleatórios. Além disso, como muitas tarefas são realizadas simultaneamente, a produtividade da mãe é baixa”, explica Fernandez.

Riqueza equivale a 12% do PIB

Um estudo realizado pela economista Hildete Pereira de Melo, do Núcleo Feminista de Pesquisa em Gênero e Economia da UFF (Universidade Federal Fluminense), concluiu que valores pagos pelos afazeres domésticos e dos cuidados (de crianças e idosos, principalmente) acrescentariam 12% ao PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil — ou 192 bilhões de reais. O número considera apenas os afazeres que não são remunerados (exclui rendimentos de trabalhadores domésticos formais).

No Brasil, levantamento do IBGE mostra que, em média, mulheres dedicam 21,4 horas por semana a estes serviços — no caso dos homens, a média é de 11 horas. No mundo, o trabalho doméstico e de cuidados gera riqueza de US$ 10,8 trilhões por ano, segundo cálculo da organização não governamental Oxfam, que produz relatórios sobre justiça de gênero.

Embora produzam fortuna de cifras trilionárias, mulheres não apenas não usufruem dela como, ao ir para o mercado formal, ganham menos do que os homens, “pois estão sobrecarregadas tentando conciliar trabalho remunerado e não remunerado”, afirma a professora Hildete Pereira de Melo. “A alta carga de tarefas domésticas leva as mulheres a procurarem ocupações mais flexíveis, com salários mais baixos”, diz.

Um modo de amenizar esse problema, na avaliação de Melo, seria um programa de transferência de renda para mulheres que fazem o chamado “trabalho invisível” — como acadêmicos e ativistas se referem aos serviços domésticos que só aparecem quando não são feitos. Ninguém nota que uma mulher limpa a casa até que ela deixe de limpá-la.

Essa renda — transferida pelo Estado — deveria ser, para a economista, compatível com o rendimento médio das mulheres brasileiras, de R$ 2.280,42 (valores de 2022). “Mas seria uma medida paliativa. O foco deve estar na assistência do governo para entrada e permanência de mulheres no mercado de trabalho.”

Este valor é menor do que os R$ 7.392 porque não se trata de cálculo de salário (considerando valores de mercado), mas sim de benefício.

‘Precisamos parar de pensar que mães trabalham por amor’

Uma frase da filósofa italiana Silvia Federici, 81, tornou-se lugar comum nos debates sobre remuneração das atividades domésticas: “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”. Federici é uma das pioneiras na defesa de salários para quem executa tais tarefas.

Esta confusão entre amor e trabalho, para a pesquisadora Renata Senlle, integrante do coletivo “Política é a mãe”, constitui um “obstáculo cultural”. “Precisamos virar a chave e mostrar que há um trabalho de cuidado envolvido”, afirma. “O que a mãe faz é visto como vocação e não uma série de trabalhos comprimidos ao longo do dia. Isso não necessariamente tem a ver com afeto.”

À extensa lista de atividades desenvolvidas pelas mães, Senlle acrescenta as de psicóloga e educadora. “Quanto custa pagar uma psicóloga, já que fazemos o trabalho emocional no cuidado com os filhos? E de tutoria escolar?”, questiona. A pandemia, diz a pesquisadora, evidenciou o comprometimento das mães com essas tarefas. “O custo de tudo isso pode ser calculado para precificar o trabalho de uma mãe.”

Em agosto de 2021, a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) apresentou projeto de lei estabelecendo aposentadoria por cuidado materno para mulheres com mais de 60 anos, além de permitir que o período de licença-maternidade seja computado como tempo de serviço. A proposta está em análise nas comissões técnicas da Câmara Federal.

O projeto de Petrone é inspirado na lei argentina. Um decreto publicado no país em 2021 permite que mulheres somem até três anos de tempo de serviço por filho nascido com vida para a aposentadoria.

Renata Senlle diz que o projeto ajuda a reconhecer o valor do trabalho do cuidado e reduzir desigualdade entre homens e mulheres na divisão das tarefas. Mas não propõe o modelo mais próximo do ideal, que seria a atribuição de um pagamento para as mães, “o reconhecimento pleno das inúmeras tarefas que as mulheres fazem no dia a dia”.

Próximo do ideal porque não seria o bastante para que a vida fosse mais justa para as mães — “principalmente as pobres e pretas”, maioria entre as empregadas domésticas, diaristas e babás “que fazem o trabalho de cuidado também fora de casa, de forma mal remunerada”, como afirma Renata Senlle.

Fonte: Universa UOL

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