Mal pagos a endividados: aplicativos aprofundam exploração no Brasil, revela estudo
Nenhuma das dez maiores plataformas digitais no país oferece condições básicas de trabalho; apps também lucram com endividamento de trabalhadores
O trabalho para aplicativos está cada vez mais precário no Brasil. É o que mostra o Relatório Fairwork, que foi antecipado para o ICL Notícias e divulgado nesta terça-feira (23). Neste ano, o estudo avaliou a atuação de dez principais plataformas digitais no Brasil — 99, Ame Flash, iFood, Lalamove, Loggi, Parafuzo, Rappi, Uber, InDrive e Superprof — e constatou que nenhuma delas cumpre os critérios mínimos de trabalho decente definidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Os princípios incluem remuneração justa; condições que minimizem riscos e garantam segurança; contratos adequados, que não isentem as plataformas de responsabilidades; gestão; e representação coletiva, como sindicatos.
Uma das coordenadoras da pesquisa, Julice Salvagni, professora de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma que houve um aprofundamento do que os pesquisadores já tinham constatado em relatórios de anos anteriores, entre 2021 e 2023. “É um cenário de condições de trabalho desesperadoras. Esse ano a situação do trabalho no Brasil está ainda pior”, afirma.
Os trabalhadores relatam horas de trabalho extenuantes e ganhos tão baixos que mal dão conta de cobrir pequenos custos. “Se um cara quebrou a perna e ficou um ano fora, ele recebeu R$ 2 mil. Esse cálculo [do seguro] nunca é suficiente”, afirma Bruno*, que faz entregas pelo iFood no Rio de Janeiro. Ele é um dos trabalhadores que conversaram com o grupo de pesquisa da Fairwork. No total, foram feitas 88 entrevistas em 13 estados.
Bruno costuma trabalhar 80 horas semanalmente — por uma remuneração líquida de pouco mais de R$ 1 mil. Entre seus custos de trabalho, estão o aluguel da bicicleta elétrica, no valor de R$ 90 por semana, e suplemento alimentar para dar conta do desgaste físico, que demanda mais R$ 200 mensais.
Aplicativos e neocolonialismo digital
A situação relatada por Bruno é comum. E, além de pagar pouco, as plataformas também lucram com empréstimos aos trabalhadores. Isso porque a baixa remuneração, combinada ao alto custo de manutenção dos meios de trabalho — como, por exemplo, o reparo de um automóvel —, facilita “a ação predatória do rentismo sobre os trabalhadores, que muitas vezes recorrem a créditos”. A lógica financeira reproduz uma lógica histórica de colonialismo, mediada pela tecnologia.
O ineditismo desta edição do estudo é que, frequentemente, esses valores são fornecidos pelas próprias plataformas: as empresas criaram suas próprias agências financeiras, por onde disponibilizam os empréstimos aos trabalhadores. É um beco sem saída: a “escolha” por pegar o valor “emprestado” surge da falta de alternativa e do endividamento. Plataformas como Uber (Banco Digio), 99 (com serviço 99 Empresta), iFood (com iFood Pago) e InDrive (com a InDrive.Money) adotam essa prática.
“Segundo os relatos que a gente tem, muitas vezes ele [trabalhador] ganha praticamente o custo que tem do trabalho ou nem isso, porque há muitas situações, que não são narradas, de insegurança alimentar”, alerta a pesquisadora Julice.
O trabalho multiplataforma, em que a pessoa exerce funções diversas em mais de uma empresa, também foi outro ponto de queixa observado pelos pesquisadores. Essa prática, que inicialmente poderia parecer uma forma de autonomia, na realidade reflete uma estratégia de sobrevivência diante da precarização. Segundo o relatório, diversos trabalhadores entrevistados relataram estar inscritos em duas ou mais plataformas ao mesmo tempo, em atividades que muitas vezes não são complementares, mas sobrepostas, o que gera sobrecarga física e mental.
“A lógica da plataforma faz com que as pessoas acabem trabalhando muito, e elas têm lá na gamificação do aplicativo uma série de critérios para cumprir para poder desbloquear um bônus. Então tem várias maneiras de fazer com que a pessoa trabalhe mais. E, dada a baixa remuneração, elas acabam acumulando jornadas muito extensas e trabalhando nos finais de semana”, explica Julice Salvagani.
O assédio, sobretudo contra mulheres, também apareceu em destaque como aspecto de vulnerabilidade no ambiente das plataformas digitais. A pesquisa identificou uma série de relatos de violência de gênero, em um patamar considerado significativo, que não encontra qualquer forma de controle efetivo por parte das empresas.
Empresários de si mesmos
Outro ponto de alerta para os pesquisadores da Fairwork é a crescente pejotização das relações de trabalho, quando profissionais atuam como pessoas jurídicas. Após a aprovação da reforma trabalhista proposta pelo governo Michel Temer, em 2017, houve um grande número de questionamentos de decisões da Justiça do Trabalho.
Em abril, o ministro Gilmar Mendes suspendeu todos os julgamentos relacionados à pejotização. O STF fará um julgamento único que servirá de repercussão geral — com adoção em todas as instâncias do judiciário. No dia 6 de outubro será realizada uma audiência pública sobre o assunto.
A pesquisadora avalia que o fenômeno da plataformização, sem as proteções fundamentais, é um caminho sem volta. “Hoje, os motoristas e os entregadores ainda são a maioria. No entanto, é um caminho em crescente, ou seja, cada vez mais e mais trabalhadores vão estar sendo usados em suas diferentes funções”, explica. “Esse é um formato de relação de trabalho absolutamente precário, mas que, infelizmente, está em ascensão.”
Um dos elementos que sustentam essa lógica da pejotização é o discurso ideológico de que o trabalhador seria “empresário de si mesmo”. Julice ainda ressalta que o crescimento desse tipo de relação trabalhista que não se deve a uma impossibilidade econômica, mas de falta de vontade política e regulatória: “É evidente que essas empresas teriam total condições de assegurar trabalho decente a todos que estão envolvidos na plataforma. Isso sem sombra de dúvidas. Mas uma mudança efetiva só aconteceria por meio de uma regulamentação séria. E isso está muito longe de acontecer”.
Ela afirma que, apesar da abertura para debates sobre direitos trabalhistas, não houve avanço significativo nesse campo. “A gente tem deixado de lado cada vez mais os direitos sociais conquistados duramente pela classe trabalhadora, sobretudo no Brasil. Há muito sangue para se deparar com uma completa desresponsabilização das plataformas, que deixam os trabalhadores e trabalhadoras à mercê da própria sorte”.
O outro lado
Antes da publicação do estudo, todas as empresas avaliadas tiveram a oportunidade de revisar o relatório e fornecer comentários. A Parafuzo informou que a metodologia da Fairwork desconsidera as realidades locais e as evidências apresentadas, e lamentou que o estudo “não tenha reconhecido as vantagens da Parafuzo em relação ao mercado tradicional, marcado pela informalidade e baixa remuneração. Na plataforma, todos os profissionais recebem mais de R$ 15 líquidos por hora e 97,5% recebem mais de R$ 18 líquidos por hora, após descontar custos, com total flexibilidade e autonomia”.
“Operamos com termos de uso justos e transparentes, alinhados com a legislação e a proteção do usuário. Os serviços não envolvem riscos relevantes e todos os profissionais contam com seguro de acidentes pessoais gratuito, comunicação transparente, protocolos seguros e canais de atendimento dedicados, reafirmando nosso compromisso com condições adequadas, autonomia e impacto social positivo.”
A Uber informou que não participou do estudo de 2025 “por entender que o princípio norteador da pesquisa se baseia em premissas derivadas de modelos tradicionais de emprego, sem considerar a necessidade de conciliar flexibilidade e autonomia”.
A 99 diz refutar “os resultados das entrevistas, porque a metodologia utilizada pela Fairwork não foi seguida: a empresa não foi contatada para participar da etapa de entrevistas com os gestores prevista no processo de avaliação”. A Fairwork respondeu que enviou um e-mail em 10 de janeiro de 2025 convidando a 99 para uma reunião.
No dia 11 de janeiro de 2025, “enviamos o convite para o Workshop de Lançamento do Fairwork Brasil. Em 11 de julho de 2025, enviamos as pontuações provisórias e os pedidos de provas. Em 15 de agosto de 2025, escrevemos novamente para a empresa, solicitando esta nota. Apenas este último contato foi retornado”.
*Nome alterado para garantir a confidencialidade do entregador
Fonte: ICL Notícias