Deficiente auditiva receberá R$ 100 mil por assédio moral no trabalho
Condenação reforça importância da inclusão no trabalho e dá visibilidade aos desafios enfrentados por pessoas surdas e deficientes na sociedade.
A juíza Paula Rodrigues de Araujo Lenza, da vara do Trabalho de Ribeirão Preto/SP, condenou multinacional a pagar indenização de R$ 100 mil a funcionária com deficiência auditiva que sofreu práticas reiteradas de assédio moral e ambiente discriminatório.
A magistrada reconheceu nexo entre o ambiente hostil e o quadro de depressão e ansiedade da funcionária, caracterizando dano moral mesmo sem incapacidade laboral atual.
O caso
A ação foi movida por funcionária que relatou ter sido alvo de perseguições por parte de seu superior e de colegas, além de sofrer exclusão em atividades de trabalho. Segundo a trabalhadora, piadas sobre sua deficiência eram recorrentes e a comunicação em libras era frequentemente desconsiderada.
A situação se agravou durante a pandemia, quando o uso de máscaras opacas dificultou ainda mais a interação da empregada com os colegas. Testemunhas ouvidas no processo confirmaram a hostilidade no ambiente laboral e a ausência de medidas inclusivas.
Para o juízo, a conduta da empresa configurou clara violação à LBI – Lei Brasileira de Inclusão. Embora cumprisse a cota legal de contratação de pessoas com deficiência, a empregadora falhou em assegurar condições efetivas de acessibilidade e inclusão, permitindo um ambiente de trabalho excludente.
Doença ocupacional
Segundo a juíza, laudo médico pericial identificou quadro de depressão e ansiedade da funcionária, reconhecendo nexo concausal entre os problemas de saúde e o ambiente hostil.
Ainda que a perícia tenha afastado incapacidade laboral atual, a juíza concluiu que o sofrimento experimentado caracterizou dano moral em razão da doença ocupacional.
Assim, além da indenização por assédio moral, foi fixada compensação pelo impacto da doença, compondo o valor final de R$ 100 mil.
A magistrada também condenou a empresa ao pagamento de diferenças de FGTS, da participação nos lucros e resultados proporcional ao período trabalhado em 2023, de indenização pelo descumprimento de cláusula coletiva, além de honorários advocatícios e periciais.
Além disso, foi reconhecida a estabilidade provisória decorrente da doença ocupacional, assegurando à trabalhadora indenização substitutiva referente ao período de garantia de emprego.
O advogado Pedro França, que atuou pro bono pela funcionária com deficiência auditiva, destacou que a ação ultrapassa o âmbito individual, trazendo à tona a urgência da inclusão efetiva no mercado de trabalho e na própria sociedade.
Segundo ele, a comunicação foi o ponto central do litígio: além dos episódios de assédio e discriminação sofridos no ambiente de trabalho, a reclamante enfrentou dificuldades de acessibilidade também no próprio processo judicial. “Houve barreiras na comunicação direta com o juiz, com os advogados, com as testemunhas e até para acompanhar o ritmo da audiência, que durou mais de três horas e meia”, relatou.
Para o advogado, o paradoxo é claro, se o Judiciário é a instância de proteção contra a discriminação, para pessoas surdas ele ainda se apresenta como espaço de obstáculos, diante da ausência de recursos adequados de acessibilidade.
Outros relatos
Em entrevista ao Migalhas, a intérprete e psicóloga Denise Perissini relatou sua trajetória e os desafios de atuar com a Língua Brasileira de Sinais no Judiciário. Apaixonada pela comunicação visual desde cedo, mesmo sem ter familiares surdos, buscou formação para se especializar na área.
Segundo Denise, a presença de intérprete é um direito fundamental, essencial para garantir que pessoas surdas tenham pleno acesso à Justiça. Ela lembra que, sem esse recurso, provas importantes podem se perder, comprometendo a dignidade e a efetividade do processo.
Apesar da relevância da função, Denise aponta a precariedade na remuneração e na valorização da Libras no Brasil. Os pagamentos, muitas vezes baixos e demorados, levam profissionais a recusar convites. Além disso, ela defende maior inclusão da língua nos currículos escolares, lembrando que há cerca de 10 milhões de surdos no país.
Histórico nos Tribunais
Em 2019, o STJ editou a Instrução Normativa 19/19 para garantir acessibilidade a advogados com deficiência ou mobilidade reduzida nas salas de julgamento. A medida, em conformidade com a resolução 230/16 do CNJ e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, prevê a eliminação de barreiras, a oferta de informações e serviços em formatos acessíveis e a adoção do conceito de desenho universal.
Entre as ações previstas, está a possibilidade de solicitação de adaptações para a realização de sustentação oral, feita pelo portal do STJ com antecedência mínima de um dia útil. O sistema permite informar a deficiência e o tipo de apoio necessário, assegurando assistência personalizada. Além disso, as salas de julgamento terão espaços reservados para pessoas com deficiência, garantindo visibilidade e livre acesso a todas as instalações do tribunal.