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Do luxo à farmácia: empresas adotam jornada 5×2 para atrair e reter talentos

Escala reduzida vira vantagem competitiva para companhias que enfrentam a nova concorrência de empregos em aplicativos

Depois da coquetelaria, a segunda coisa que Tiago Pavel, de 43 anos, mais gosta na vida é tocar guitarra e bateria. Em 2017, quando começou a trabalhar como bartender, teve de deixar a banda de rock que tinha com os amigos. Era impossível conciliar a jornada de trabalho de seis dias na semana e apenas uma folga num hotel de luxo de São Paulo com os ensaios e as apresentações na noite paulistana.

Na última terça-feira, 30, Pavel estava radiante e fazia planos de retomar os ensaios da banda. Naquele dia, a empresa da qual ele é empregado dava início um novo esquema de trabalho. A escala semanal passava a ser de cinco dias de trabalho com duas folgas (5×2) e a carga horária semanal foi reduzida em duas horas, sem corte no salário.

“A gente não consegue descrever a alegria”, disse Pavel ao Estadão. Segundo ele, o contentamento não era só pela jornada 5×2, mas por ter mais qualidade de vida e diminuir a carga horária. A mudança é “equivalente a um belo aumento de salário”, resumiu o bartender.

Pavel é um dos cerca de 350 funcionários do hotel de luxo Palácio Tangará que foram beneficiados com o novo esquema de trabalho. A iniciativa da mudança partiu da direção do hotel, que acredita que a qualidade de vida da equipe é essencial para atingir alto desempenho no segmento de hospitalidade.

Para os trabalhadores, a escala 5×2 representa mesmo mais tempo e qualidade de vida, diz Maíra Blasi, especialista em futuro do trabalho. “Um único dia para cuidar da casa, da saúde ou da família é pouco. Saúde mental vai além de planos de saúde, envolve reduzir carga de trabalho e melhorar salários”, afirma.

Com as mudanças na escala de trabalho, os funcionários do Palácio Tangará passaram a ter 104 folgas por ano, ante 65 na escala 6×1. Também houve redução da jornada semanal de 44 horas para 42 horas, a fim de acomodar a redução dos dias trabalhados na semana e não sobrecarregar a jornada diária, aumentada em cerca de uma hora.

“Além de atender ao desejo da maioria (dos trabalhadores), a decisão também fortalece o posicionamento do Palácio Tangará como empregador de referência”, diz o gerente geral, Celso do Valle. Segundo ele, nenhum outro hotel de luxo em São Paulo oferece a escala 5×2 a 100% dos funcionários e isso torna a empresa ainda mais atrativa para a contratação e retenção de mão de obra qualificada.

Maíra acrescenta que os benefícios se estendem para as empresas com colaboradores mais descansados e melhoria no atendimento. “Estresse e cansaço reduzem paciência e desempenho”, sugere.

Aplicativos também forçam mudança

No varejo farmacêutico, as Drogarias São Paulo e Pacheco, do Grupo DPSP, anunciaram que todas as unidades passaram a adotar a jornada 5×2. A rede é a primeira do setor farmacêutico a fazer essa transição, que deve impactar cerca de 24 mil funcionários distribuídos entre administrativo, lojas e centro de distribuição, segundo informações da companhia.

A empresa afirma que o objetivo da implementação é semelhante ao do Tangará: oferecer mais bem-estar e qualidade de vida aos colaboradores. Para atender as 44 horas semanais previstas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a empresa adaptou a carga horária.

Agora, a jornada diária é de 8h48 minutos. Com as duas folgas semanais, o número de dias de descanso subiu de 64 para 96 dias ao ano. A mudança é apresentada pela rede como um passo dentro da política de valorização de pessoas. Entre os argumentos, cita benefícios já oferecidos, como assistência médica, odontológica, participação nos resultados e programas de bem-estar.

A decisão do Palácio Tangará e das drogarias São Paulo e Pacheco de adotar a jornada 5×2 ocorre depois de a varejista H&M estrear no Brasil com essa proposta. A varejista sueca iniciou as operações no País em agosto com escala reduzida para os funcionários de loja.

Joaquim Pereira, country manager e responsável pela implementação da rede no Brasil, disse ao Estadão na ocasião da inauguração da primeira loja no Shopping Iguatemi, em São Paulo, que a varejista implementou a escala 5×2, enquanto a maioria do varejo brasileiro adota a 6×1, porque é uma empresa que “segue seus valores”. E um dos valores da companhia, disse, é que as pessoas tenham equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional.

Presente em 79 países, a jornada reduzida é o padrão da companhia no mundo. “Achamos que, com essa decisão de ter escala 5×2 no Brasil, poderemos dar esse benefício a todos os nossos funcionários e, ao mesmo tempo, ajudar o varejo a modificar isso (escala de trabalho). Todos têm o direito a passar tempo com a sua família, ter vida privada, independentemente de trabalhar no varejo.”

Além das questões relacionadas ao bem-estar dos funcionários, há a hipótese de que as empresas adotem a mudança diante da crescente dificuldade de contratar e reter talentos, aponta Maíra Blasi. “Não é que as empresas sejam legais ou bondosas”, diz.

De acordo com a especialista, o fenômeno dos empregos em aplicativos mudou o cenário. Hoje, as grandes varejistas com funções na escala 6×1 competem diretamente com essas empresas. Segundo Maíra, muitos trabalhadores consideram que não vale mais a pena atuar em estabelecimentos como farmácias ou mercados, quando podem se cadastrar em aplicativos sem passa por um processo seletivo rigoroso.

“Essa modalidade traz uma falsa sensação de flexibilidade”, aponta. A aparente autonomia atrai cada vez mais profissionais. Atualmente, o Brasil soma 1,7 milhão de entregadores por aplicativo, segundo dados do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). A pessoa que tem pouco tempo para cuidar de si e da família procura outros modelos de trabalho para ter mais tempo livre, diz Maíra.

Custos da operação

Para bancar essa mudança, o Palácio Tangará, do grupo alemão de hotéis de luxo Oetker, vai desembolsar R$ 2 milhões por ano. A despesa aumentou por conta da contratação de mais 27 funcionários, a fim de redistribuir a carga horária e as jornadas. O total de empregados no hotel subiu de 329 para 356.

Questionado, o Grupo DPSP não detalhou se houve contratações extras para viabilizar a transição. Limitou-se a informar que mantém vagas abertas “independentemente da escala” e que a implementação “não mudou isso”. Também não quis abrir os custos da operação, alegando que “todas as alterações financeiras foram previstas”. A empresa informa que está concluindo “novos estudos de impacto” após os ajustes na jornada.

Modelo 5×2 ainda enfrenta entraves

Mesmo com o pioneirismo de algumas empresas, a adoção ampla da redução de escala ainda não é uma tendência no País. Atualmente, o debate sobre o fim da jornada 6×1 está parado no Congresso Nacional. Em julho deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse que planejava reunir empresários e trabalhadores para apresentar uma “nova forma de se trabalhar” no Brasil.

Na opinião do presidente do Sindicato dos Comerciários de São Paulo e presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT), Ricardo Patah, a decisão de algumas redes varejistas de adotar a jornada 5×2 deve forçar a concorrência a seguir o mesmo caminho. “Vai ser um instrumento facilitador para o que estamos buscando. Queremos esse 5×2 já faz tempo.”

Maíra Blasi diz que a jornada reduzida pode demorar a ganhar escala no Brasil. Mas ela acredita que empresas preocupadas em reter talentos devem adotar o novo formato nos próximos anos. “Existe a ideia de que isso não funciona aqui. Mas casos que estão surgindo podem moldar uma nova cultura”, analisa.

O Grupo DPSP aposta que o modelo pode se tornar referência para o varejo farmacêutico. O CEO Marcos Colares defende que a decisão é resultado de “anos de estudos” na organização.

Procurada, a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) afirmou que não irá se manifestar sobre esse assunto e aguarda os desdobramentos legais para definir um posicionamento formal.

A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) disse, por meio de nota, que “incentiva a busca de soluções através da negociação coletiva”. A alternativa de mediação, segundo a entidade, “é um importante instrumento de ajuste entre os atores sociais, também para deliberações acerca da jornada laboral entre empregadores e trabalhadores. Tal ferramenta permite que sejam levadas em conta as peculiaridades e possibilidades regionais dos diferentes setores da economia, inclusive do comércio de bens, serviços e turismo”.

Estadão procurou também as maiores redes varejistas para saber como estão avaliando a questão da jornada 5×2. A Lojas Renner informou, por meio de nota, que “segue atenta aos movimentos de mercado e eventuais alterações legislativas sobre os temas que envolvem a jornada de trabalho de seus colaboradores”. O GPA disse apenas que acompanha o tema. Casas Bahia, Magazine Luiza, Carrefour e Riachuelo não se manifestaram.CompartilharSiga nas redes

Fonte: Estadão