Com grupo Heineken, ‘lista suja’ do trabalho escravo bate recorde de nomes
Lançada há 20 anos, no primeiro governo Lula, a lista é atualizada semestralmente com a entrada e a saída de nomes – a última atualização foi em abril.
Ela seguiu em vigência durante a gestão Jair Bolsonaro e, segundo as Nações Unidas, representa um dos principais exemplos globais de combate à escravidão contemporânea.
Dentre as atividades econômicas mais comuns entre os empregadores incluídos na atual versão da lista suja, estão a produção de carvão vegetal (23), a criação de bovinos para corte (22), os serviços domésticos (19), o cultivo de café (12) e a extração e britamento de pedras (11). Minas Gerais é o estado que com maior número de empregadores incluídos, com 37, seguido por São Paulo (32), Bahia e Piauí (14), Maranhão (13) e Goiás (11).
Dos 204 novos empregadores, três são restaurantes de comida japonesa no município de São Paulo. Confira a relação completa neste link.
Na avaliação do auditor fiscal Matheus Viana, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do MTE, o cadastro continua sendo “uma importante ferramenta de transparência” para a sociedade. Para ele, o número recorde de novas entradas reflete compromisso da Inspeção do Trabalho em erradicar o trabalho escravo.
Motoristas a serviço do grupo Heineken em condições de escravidão
A ação fiscal que levou à inclusão da Kaiser na lista suja ocorreu em março de 2021. Na ocasião, auditores fiscais fizeram uma inspeção na Transportadora Sider, em Jacareí e Limeira (SP), e resgataram 23 trabalhadores.
Durante as investigações, constatou-se o vínculo entre a transportadora e a Kaiser. “Conclui-se que o contratante Cervejarias Kaiser Brasil é responsável direto pelas condições análogas às de escravo a que foram submetidos os 23 motoristas profissionais que lhe prestavam serviços de transporte da contratada Transportadora Sider”, diz o auto de infração.
Os resgatados eram todos migrantes estrangeiros – um haitiano, e os demais, venezuelanos. De acordo com os auditores, eles foram “arregimentados de forma fraudulenta e ilícita”, caracterizando “tráfico de pessoas para fim de exploração laboral”. Além da Kaiser, a mesma operação responsabilizou a Ambev, mas o recurso sobre o auto de infração ainda não transitou em definitivo.
A jornada de trabalho foi considerada exaustiva, sem tempo para descanso semanal remunerado nem intervalo de jornada. Também foram identificadas condições degradantes, pois parte dos trabalhadores não tinha alojamento e dormia no próprio caminhão. Segundo a fiscalização, não havia fornecimento de água potável.
Em nota, o grupo Heineken afirmou que, na época da fiscalização, a empresa se mobilizou para “dar todo apoio aos trabalhadores envolvidos e para garantir que todos os seus direitos fundamentais fossem reestabelecidos prontamente”. O texto informa ainda que a transportadora não faz mais parte do quadro de fornecedores da companhia.
A nota diz que a Heineken reafirma o “respeito à legislação e aos direitos dos trabalhadores” e que segue “à disposição para continuar construindo, em parceria com o mercado, formas de trabalho e controle para que casos como esse não se repitam no futuro”. Clique aqui para ler a íntegra do posicionamento.
Sobre a ‘lista suja’ do trabalho escravo
Prevista em portaria interministerial, a “lista suja” inclui nomes de responsabilizados em fiscalização do trabalho escravo, após os empregadores se defenderem administrativamente em primeira e segunda instâncias.
Os empregadores – pessoas físicas e jurídicas – permanecem listados por dois anos.
Apesar de a portaria que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. Isso tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.
Em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da “lista suja”, por nove votos a zero, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).
A ação sustentava que o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. A corte afastou essa hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade. E que a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.
O relator destacou que um nome só vai para a relação após um processo administrativo com direito à ampla defesa.
Trabalho escravo hoje no Brasil
Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, quase 62 mil trabalhadores foram resgatados e cerca de R$ 130 milhões pagos a eles em valores devidos. Participam desses grupos, além da Inspeção do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Defensoria Publica da União.
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.
Fonte: Coluna Leonardo Sakamoto com Repórter Brasil no UOL