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Consciência negra: o peso de ser a primeira a ascender na família

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Imagem: Infográfico AzMina

Quando a pesquisadora em nutrição Rayane Freitas, 31 anos, foi chamada para apresentar sua pesquisa de doutorado em outro país, o inglês era uma preocupação. O primeiro contato com a língua foi em uma escola de bairro na periferia de São Vicente, litoral de São Paulo, onde morava. O conteúdo era satisfatório, mas inferior ao recebido por seus colegas brancos em viagens de intercâmbio.

As inseguranças eram não conseguir falar, ou apresentar o trabalho e não ser entendida. “Mas nunca fui de me amedrontar”. Pediu ajuda a duas pessoas com mais habilidade e propôs alguns ensaios. Quando chegou o dia, estava pronta. Para ela, a criatividade para contornar as dificuldades ao longo da trajetória profissional é uma característica herdada de quem veio antes. “Uma estratégia de resistência de pessoas negras no mundo todo”.

Estudar sobre raça para entender as potências de seus ancestrais, e não ter medo de estar em lugares majoritariamente ocupados por pessoas brancas, também são formas que encontrou de reafirmar o próprio valor e competência. “Porque muitas pessoas não viveram o que a gente viveu e não têm metade da nossa capacidade, ânimo e esforço para chegar nesse lugar”, avalia.

Falta de referências

Anos antes de levar sua tese para Argentina, Portugal e Suíça, Rayane questionava os caminhos da profissão. No último ano da faculdade, não tinha interesse em atuar nas áreas mais comuns da nutrição. Foi uma aluna dedicada desde o fundamental e, quando chegou à universidade, entendeu que o bom desempenho poderia garantir uma bolsa. Engajada em dois projetos de iniciação científica, passou a estudar incansavelmente para garantir o desconto na faculdade mais cara de Santos (SP). Sempre com o incentivo dos pais, era a primeira da família a chegar tão longe.

A sugestão para um mestrado logo após a graduação surgiu de um professor. “Pessoas negras não têm noção de que isso existe, porque não tem ninguém perto que fez”. A insegurança de embarcar na vida acadêmica também é financeira.

Atualmente, alunos de doutorado que conseguem uma bolsa recebem R$ 3.100 mensais, conforme tabela da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Até 2023, eram R$ 2.200. No mestrado, o valor saltou de R$ 1.500 para R$ 2.100. Muitas vezes, a exigência de dedicação exclusiva e o baixo retorno financeiro tornam a trajetória acadêmica impossível para mulheres negras. Elas são chefes de família em 56,5% dos lares brasileiros, segundo dados do DIEESE.

Quando conseguem ingressar na pós-graduação, a dificuldade de entrar no mercado de trabalho, mesmo com o título, é outro obstáculo. “Porque envolve todo um capital social, de contatos e indicações, de ‘vamos ali dar aula naquela universidade’, que pessoas negras não têm”, conta Rayane.

Em 2020, apenas 2% dos alunos de pós-graduação no Brasil eram pretos, 12,7% eram pardos, 2% amarelos, menos de 0,5% indígenas e 82,7% eram brancos. O levantamento foi feito pela Liga de Ciência Preta Brasileira com dados da Plataforma Lattes, serviço do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que reúne informações curriculares, grupos de pesquisa e instituições das áreas de ciência e tecnologia.

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Imagem: Infográfico AzMina

O peso de ser a primeira

Mesmo quando mulheres negras conseguem ultrapassar essas barreiras, o peso da falta de referências persiste. Por serem as primeiras, muitas sentem que não podem desistir de trajetórias, muitas vezes marcadas por violências, porque tirariam de familiares e amigos a chance de terem uma representante no topo. É o que vive a alagoana Carla Santos, 38 anos.

Hoje ela é consultora técnica no Ministério da Saúde, onde atua em programas e políticas públicas de alimentação e nutrição em estados e municípios. Um lugar que nunca duvidou que chegaria, porque sempre sentiu que sua capacidade era grande, e poderia alcançar espaços relevantes. Mas, com a realização profissional, veio o peso de ser referência.

O maior conflito aconteceu no doutorado, que começou na pandemia de covid-19 e foi atravessado por dificuldades, como a impossibilidade de ir a campo estudar os objetos de pesquisa, em um tempo que pedia isolamento. Obstáculos que – somados a questões pessoais – fizeram ela pensar em abrir mão do projeto algumas vezes. Mas reconsiderou em todas. “Esse título por si só não vai me dizer nada, mas para as pessoas ao meu redor é algo importante e pesa muito desistir”, desabafa.

Vigilante o tempo todo

Violências de todo tipo, das mais sutis às escancaradas, atravessam a trajetória de mulheres negras que ascendem socialmente. No caso de Maria Taíres, 31 anos, farmacêutica e pesquisadora, uma das mais comuns é não ter espaço para errar. “Porque você é preta, entendeu? Mas não pode também fazer muita coisa, porque se você se destaca, é muito ousada”, conta. Sua resposta ao ambiente inseguro é a postura de vigilância constante.

Ao mesmo tempo que sente cansaço por nunca conseguir relaxar, ela percebe que ocupar lugares de decisão – mesmo quando embranquecidos – é necessário para lutar por mudanças. “Se a gente não tiver lá, vai continuar da forma que a gente não quer”.

Esse desejo remonta a adolescência de Maria, em Itabaianinha, Sergipe. Na época, a casa do prefeito era o modelo de luxo da cidade. Ao mudar para cidades maiores e se aliar a movimentos sociais, ela ganhou um novo olhar: dinheiro, poder e raça andavam – na maioria das vezes – lado a lado, num ciclo que se retroalimenta. “Essa galera tá montada em cima da grana e, por isso, domina a questão política da cidade. As pessoas não conseguem fazer essa correlação”.

Quando chegou a Brasília para trabalhar no Ministério da Saúde, levou a missão de atuar pelo coletivo. Assumir a responsabilidade pelos sonhos de quem a cerca é desgastante, mas também motivo de força para ela. “Estou aqui para abrir portas porque outras mulheres negras fizeram esse caminho antes. Nenhuma mulher negra é sozinha”.

Não posso perder

“Será que eu tenho que fazer mais? O que eu posso fazer para eles viverem isso também?”. A jornalista Laís Cangussu, 24 anos, luta diariamente com duas forças contrárias. A realização de ter saído de Belmonte, cidade de 23 mil habitantes no sul da Bahia, para estudar e trabalhar em Santos, litoral de São Paulo, e a dor de não poder proporcionar mais à mãe, que vende acarajé na garagem de casa.

Por ora, Laís sente alívio por perceber o efeito indireto da sua ascensão sobre a mãe, que a criou sozinha. “Agora que eu saí de casa, ela tá conseguindo comprar as coisas dela, porque não tem mais esse peso de dar o de comer, comprar roupa”. O número de mães solo no Brasil cresceu 1,7 milhão entre 2012 e 2022, e 90% delas são negras, com renda média de R$ 1.685,00. A remuneração representa 39,2% a menos do que outras mães solos ganham, segundo os dados do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).

Laís é a primeira pessoa da família a ingressar no ensino superior, e foi a primeira a viajar de avião. Sua revolução, que é pessoal e coletiva, teve ajuda do projeto social Equipe Riso, que financiou os estudos e moradia enquanto ela cursava a universidade. Com o dinheiro que ganha como jornalista, ela paga os custos da quitinete onde vive e sonha com a casa própria. Mas as economias, por enquanto, vão para uma reserva de emergência, já que não tem a quem pedir socorro. “Tenho muito medo de um dia perder tudo e não ter dinheiro para pagar aluguel”.

Marcas da pobreza

O medo de voltar à pobreza é constante entre mulheres negras que ascenderam e – na maioria dos casos – se organizaram para elevar a família a outro patamar. Em entrevista ao podcast Louva Deusa, a rapper Tracie Okereke compartilhou uma experiência semelhante.

Como cantora, ela conseguiu tirar a família de lugares economicamente vulneráveis e marcados pela violência, mas a sensação de falta de solidez permanece. “Dá esse pânico quando uma coisinha não sai como a gente pensou, a gente já volta com esse negócio de ‘vou voltar para a miséria’, mesmo que a gente esteja muito distante agora”.

Negligenciadas pelo Estado, pessoas negras e pobres aprendem, desde cedo, que são responsáveis por contornar a ausência de direitos a que são submetidas – como falta de saneamento básico, acesso à creche, segurança. Quando conseguem ascender, é comum que tomem para si a responsabilidade de melhorar a vida de quem ficou. Movimento que tem impactos a longo prazo.

“Como ela acaba fazendo essa transferência de renda para quem tem menos, ela não consegue de fato se fixar na classe média e também não consegue de fato tirar a família da pobreza”, diz a orientadora financeira, Amanda Dias. Mas por não ter em quem se espelhar, é função dessa mulher aprender sozinha como administrar o dinheiro e como fazê-lo render.

Amanda Dias também explica que, se tratando de pessoas negras, não basta apenas o acúmulo de recursos para que esse indivíduo seja colocado – e se sinta – em um outro lugar social. “Eu já vi muitas mulheres narrando que suam frio na hora de pedir a conta, mesmo sabendo que tem dinheiro para pagar no débito”, diz. Uma reação ao trauma causado pelo racismo e pela pobreza, que fazem com que situações relacionadas ao poder de compra sejam atravessadas por humilhação ou constrangimento.

Em alguns casos, para provar que podem custear o que desejam e se proteger de possíveis ataques, muitas compram até três vezes mais do que querem ou precisam. “Ser negro é uma experiência mais cara do que ser branco. A gente precisa mostrar que têm condições, enquanto eles podem usufruir do direito da riqueza invisível”, argumenta Amanda Dias.

Outra forma encontrada por elas para lidar com a sensação de que estão sob suspeita, é se privar de frequentar alguns ambientes. Já que em uma sociedade racista, poder pagar por algo é diferente de ser visto e tratado como bom cliente. “Eu ascendi financeiramente, mas eu continuo muitas vezes frequentando os mesmos espaços de quando eu estava na universidade, porque muitas vezes sou mais bem recebida naquele espaço”, diz Júlia França, que é negra e adota um olhar racializado em seu consultório.

O “não lugar”

Júlia França associa a angústia da ascensão de pessoas negras ao “não lugar” para o qual muitas são arrastadas. O que pode levar ao auto-ódio – aversão à própria imagem e conquistas – e a certa despersonalização ou falta de reconhecimento de si. “Tenho pacientes que têm bons carros, boas roupas, mas quando vão visitar a mãe, vão com a mais barata para não serem vistos com desconfiança. Quando vai para o ambiente socioeconômico alto, usa os bens mais caros, para mostrar que é digno [daquele espaço]”.

A psicóloga explica que ser visto com estranheza pela família e comunidade de origem ao ascender é comum, e mais um efeito da colonização. A maioria das pessoas negras aprendem que a vida com dinheiro é para os brancos, e a prosperidade financeira não é para elas. Quando conseguem avançar apesar das dificuldades, podem ser vistas pela ótica de que a pobreza faz parte da identidade racial, na qual avançar seria sinônimo para embranquecer.

Enlouqueceu de tanto estudar

“Cuidado para não ficar igual sua parente, ela estudou demais e enlouqueceu”. Esse foi o alerta que a pedagoga e funcionária pública Daniele Cardoso da Silva, 31 anos, ouviu enquanto sonhava com a universidade. O conselho era pegar o caminho mais seguro: formar família e ter filhos. Segundo as memórias familiares, a primeira parente a entrar numa faculdade se esforçou tanto para se formar que adoeceu.

Daniele carregou a sombra desse temor até a vida adulta, quando conheceu a outra parte da história. Além de estudar, a prima era responsável pela renda da casa e pelos cuidados de um parente próximo. A jornada de trabalho extensa, somada à rotina de estudante, agravou um transtorno mental pré-existente, levando a diversas internações psiquiátricas.

Como o sonho de estudar era o único elemento novo na rotina de mulheres de várias gerações, ele foi associado ao adoecimento. A mudança aconteceu quando Daniele traçou a própria trajetória profissional. “Minha avó foi na minha defesa de mestrado e hoje fala que queria ter estudado”.

Mulheres negras dedicam quase 68 horas a mais de trabalho de cuidado não remunerado, quando comparadas às mulheres brancas, de acordo com estudo da Secretaria Nacional de Cuidados e Família do Governo Federal. Isso equivale a 1,5 semana a mais de trabalho por ano, considerando a jornada de 44 horas semanais. Muitas vezes, o tempo gasto em cuidado impede o ingresso no mercado de trabalho formal – que dá acesso a benefícios – e a realização de outros sonhos que exigem tempo.

Preciso compensar na imagem

Na faculdade, Daniele sempre aparecia com o cabelo escovado e unhas pintadas, coisas que aprendeu com a mãe. Não era vaidade, mas zelo com a imagem por medo do descrédito, hábito que carrega até hoje.

Disfarçar a negritude é uma estratégia para tentar afastar o racismo e manter a porta aberta para oportunidades profissionais. É como se a competência tivesse cor.

Prestes a defender sua tese de doutorado, a pedagoga passou pela transição capilar com o apoio do coletivo Geninhas em Movimento, que promove aquilombamento para estudos e práticas pedagógicas antirracistas em Goiânia. “Foi um lugar de respiro”. Entre as entrevistadas para essa reportagem, essa foi uma saída comum. Encontrar espaços de expressão e acolhimento, mas também de reconhecimento e celebração, junto a outras mulheres negras.

Fonte: Universa/UOL/Matéria publicada originalmente em AzMina