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‘Corrente do bem’: há 33 anos, campanha atende pedidos de Natal de crianças

Perto do horário do almoço, a agência central dos Correios, no Vale do Anhangabaú, destoava dos tumultos de dezembro. Ninguém precisava esperar a vez em pé, carregando pacotes pesados. Ainda mais sossegado estava o cantinho onde uma mesa cheia de cartas depositadas em três caixas de papelão revelava, linha a linha, sonhos de crianças brasileiras.

A cena se repete todos os anos desde 1989, quando a campanha “Papai Noel dos Correios” teve sua primeira edição no país. De lá para cá, todos os anos se acumulam missivas à espera de padrinhos e madrinhas dispostos a realizar os pedidos de Natal de crianças em situação de vulnerabilidade. Em 2022, milhares delas estavam disponíveis em diversas cidades brasileiras para escolha no site dos Correios ou em agências selecionadas. Os presentes oferecidos pelos padrinhos são entregues sem custos de postagem — que ficam a cargo da instituição.

Na agência do centro de São Paulo, letras de quem está aprendendo a escrever se misturavam a caligrafias mais definidas, dos maiores ou dos pais. Além de confessar obediências e rebeldias, as cartas transbordam palavras doces para o Papai Noel e, muitas vezes, terminam com desenhos caprichados. Algumas relatam uma vida difícil em casa, mas o tom de tristeza logo desaparece, substituído pela esperança de ganhar um presente.

‘Presente de Deus’ Pedidos específicos, como o da menina de 9 anos que queria uma cauda de sereia azul e roxa, eram exceção. A maioria pede bonecas, bolas, material escolar ou tênis para ir à escola. Outros sonham talvez alto demais, com artigos eletrônicos e bicicletas – mas estes às vezes se realizam.

A lactarista Marisete Alves Silva, 47, e sua filha Julia Vitória, 17, são a prova disso. No fim da manhã, Marisete chegou ao balcão com dois embrulhos para presentear crianças. Sua história com a campanha, no entanto, vem de longa data. Mais exatamente do Natal de 2013, quando a filha única, então com 8 anos, lhe pediu uma bicicleta.

Marisete teve a filha após um mioma que, segundo a médica, a impossibilitaria para sempre de engravidar. “A Julia veio para me tirar do buraco que eu estava. Ela é um presente de Deus”, diz, com os olhos úmidos. Sem dinheiro para realizar o sonho da menina, chorou por dentro. Só tirou a tristeza do rosto quando soube, pela TV, da campanha dos Correios.

Coração disparado

“Vamos, Julia, fazer uma cartinha para o Papai Noel?”, disse a mãe à menina, que se animou e escreveu a cartinha, assinou e fez um desenho das duas ao lado do Papai Noel e da bicicleta. “Será que o Papai Noel vai se esquecer de mim?”, dizia a pequena Julia, ansiosa, às vésperas do Natal. No dia 24, o porteiro avisou sobre a entrega uma encomenda. O coração de Julia disparou quando viu o pacote. Pelo tamanho, não tinha dúvida: era a bicicleta.

Nos natais seguintes, ganhou as bonecas Barbie e Anna, da animação Frozen, que pediu. E Marisete esperou anos até poder retribuir o agrado feito à filha. Mesmo desempregada, separou algum dinheiro para quitar sua dívida de gratidão com o “Papai Noel dos Correios”. Foi até a agência, que fica perto da quitinete onde elas moram, e ficou comovida com a cartinha de um menino de 2 anos que pedia um xampu para bebê e uma toalha do Homem-Aranha.

“Uma mãe escrever uma coisa assim numa carta, isso dói”, diz a lactarista que, por conta própria, incluiu nos pacotes um boneco do personagem.

De afilhada a madrinha

Já a carta escolhida por Julia foi a de uma menina de 5 anos que pediu um boneco de neve e um par de botas. “Sei o que é querer ter um brinquedo e os pais não puderem dar”, diz a estudante. “Às vezes as pessoas falam que presente é só material. Mas para uma criança, a sensação é como se alguém olhasse pra ela, se importasse com o desejo dela”, reflete a menina que ganhou uma bicicleta e virou uma divulgadora da campanha entre conhecidos.

A desempregada Sandra Leal, 50, chegou à agência depois de passar por uma consulta no Hospital das Clínicas. Levava nas mãos a cartinha de sua sobrinha-neta, Milena, de 8 anos, que inicialmente tinha feito uma lista com tudo o que queria ganhar. “Não, filha. O Papai Noel é das crianças pobres. Ele dá lembrancinhas. Não realiza sonhos grandes”, explicou à menina. Então, Milena escreveu outra carta sem pedir nada, apenas com os dizeres: “Feliz Natal, Papai Noel, te amo!” Só queria uma prova de que o bom velhinho existe.

Sandra, que não tem filhos, ficou emocionada com a atitude. As duas sempre tiveram uma ligação forte, de convivência, carinho e brincadeiras. Ultimamente, andava preocupada com a sobrinhaneta: “Ela vê muitas coisas ruins na televisão. Precisa acreditar que existem coisas boas”. A senhora voltou para casa, no município de Francisco Morato, a 45km da capital, com a esperança de que a carta de Milena seja adotada e ela receba uma boa surpresa – ou, ao menos, a carta-resposta do bom velhinho.

Infância mais pura

No início da tarde, movimento na agência aumentou. A advogada Deyse Santana, 41, tinha acessado o site dos Correios no dia anterior e lido cartas de várias partes do país. Escolheu a que achou mais inocente e divertida: de uma garotinha de 5 anos que confessou uma briga com a irmã, mas garantia ter sido perdoada.

Sobre outras crianças que pediam celulares, tablets, notebooks e videogames, Deyse tem a opinião de que esses presentes encurtam a infância. “É bom que a criança brinque de uma forma mais pura, desenvolvendo a criatividade e habilidades. Não ficar viciada em tecnologia desde pequena”, acredita.

A advogada entrou em várias lojas até encontrar a boneca pedida pela “afilhada”. Não veria a reação da menina, de quem já se considerava próxima. Mas era a felicidade dela que importava.

‘Corrente do bem’

Morador de Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte, o funcionário público Paulo Nascimento, 41, estava em férias em São Paulo e, passando pela praça Pedro Lessa, viu a agência e se lembrou da campanha. Pegou um bolo de cartas e não se demorou a se decidir por uma, de uma menina que completaria 6 anos por aqueles dias. A mochila e o conjunto de canetas coloridas seriam, portanto, um presente duplo, de Natal e aniversário.

Para ele, esse tipo de gesto é um passo para corrigir a rota do Brasil. “Temos que começar a formar correntes do bem agora para sairmos de onde estamos. Se a gente cria uma geração nesse clima de animosidade, de disputas e conflitos, é isso o que a gente está pensando para o futuro do país”, afirma.

A comerciante Joselia Bonfim Sousa, 59, pegou a estrada de Santana do Parnaíba até a capital. Levou cartas de diversas crianças, que coletou de casa em casa, como faz todos os dezembros. Além disso, escolheu uma carta na agência Fazendinha, em seu município, para apadrinhar. Ao ver que a menina pedia um fichário, Joselia chorou porque, como ela, nunca teve um fichário na infância. Entre os pedidos que levou, emocionou-se com crianças que pediam cesta básica ao Papai Noel. “Minha vida também foi muito difícil, passei muita fome. Minha mãe foi embora quando eu tinha três anos e meu pai batia na gente.”

Na agência, ela espera que todas as cartinhas sejam escolhidas por alguém. Um desafio, pois são cerca de 13 mil cartas para adoção em São Paulo. Se até 16 de dezembro não fossem escolhidas, receberiam apenas o cartão-resposta do Papai Noel. Não as de Santana do Parnaíba: para elas, Joselia daria uma sacola com doce, salgadinho e um refrigerante pequeno.

Fonte: TAB/UOL

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