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Escravos sem correntes: 14% dos trabalhadores resgatados no país são encontrados com restrição de liberdade

De 1.112 trabalhadores libertados em condições análogas à de escravos nos últimos dois anos, apenas 153 foram encontrados pelos fiscais em uma situação que os impedia de deixar seus trabalhos. O número representa 14% do total de resgatados.

É o que mostra um levantamento exclusivo feito pelo G1 com base na análise de 315 relatórios de fiscalização obtidos via Lei de Acesso à Informação. Foram analisadas 33.475 páginas que contêm a descrição do local e da situação verificada in loco pelos grupos de fiscalização, bem como as infrações aplicadas, fotos, depoimentos dos trabalhadores e documentos diversos, como recibos e guias trabalhistas.

Das 315 fiscalizações analisadas (de janeiro de 2016 a agosto de 2017), 117 acabaram com ao menos um trabalhador resgatado. Só em 22 delas, no entanto, foi constatado algum tipo de cerceamento de liberdade (como a retenção de documentos, a restrição de locomoção ou a servidão por dívida).

O trabalho de apuração do G1 começou a ser feito após o governo publicar, em outubro do ano passado, uma portaria alterando os conceitos usados pelos fiscais para identificar um caso de trabalho escravo. Ela estabelecia que era preciso haver restrição de liberdade para que fosse caracterizado o trabalho análogo ao de escravos.

Ou seja, se ela estivesse em vigor durante o período analisado pela equipe de reportagem, quase mil trabalhadores resgatados (959) não iam ter se enquadrado na nova definição e podiam estar até hoje em condições degradantes.

Durante a apuração, no entanto, houve reviravoltas: a portaria foi suspensa pela ministra Rosa Weber, do STF, o então ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira pediu demissão e uma nova portaria foi publicada, mantendo válidas as regras em vigor há quase 15 anos, em um sinal claro de recuo do governo.

Atualmente, considera-se em condição análoga à de escravo o trabalhador submetido às seguintes situações, de forma isolada ou conjunta:

Trabalho forçado – aquele exigido sob ameaça de sanção física ou psicológica e para o qual o trabalhador não tenha se oferecido ou não deseje permanecer.
Jornada exaustiva – toda forma de trabalho que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação dos direitos do trabalhador relacionados a segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social.
Condição degradante de trabalho – qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho.
Restrição de locomoção por dívida – limitação do direito de ir e vir em razão de dívida contraída com o empregador no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho.
Retenção no local de trabalho – em razão de cerceamento do uso de meios de transporte, manutenção de vigilância ostensiva ou apoderamento de documentos ou objetos pessoais.

Para o frei Xavier Plassat, coordenador da campanha da Comissão Pastoral da Terra contra o trabalho escravo, a resposta da sociedade civil e da mídia foi tão imediata e contrária às mudanças propostas em outubro pelo governo que discussões futuras buscando fazer novas alterações foram desencorajadas. “Deram tiros no pé, o que cria uma situação mais difícil para o Congresso voltar a discutir essa matéria. Conseguimos mostrar que essas posturas não tinham fundamento. Isso esvaziou o potencial de argumentação de quem quer acabar com a política nacional do trabalho escravo”, afirma.

“Quando um fiscal vai a campo fazer uma operação de fiscalização de denúncia de trabalho escravo, na maioria dos casos, a denúncia não se revela fundamentada. Isso já retira automaticamente o argumento de que tem um viés ideológico sistemático por parte do fiscal do trabalho de querer ‘denegrir’ os empregadores brasileiros e prejudicar a nossa economia. Isso é falso. É fake news”, diz Plassat.

Segundo ele, os números do levantamento feito pelo G1 confirmam que a maior parte dos casos de trabalho escravo no país acontece por conta de violações das condições decentes de trabalho (por jornada exaustiva ou condições degradantes). De acordo com Plassat, quando as violações são graves, a situação é considerada degradante e se enquadra como trabalho escravo. Ou seja, não há necessariamente uma restrição da liberdade do trabalhador, definição interligada ao conceito clássico de escravidão.

O coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, o procurador Tiago Muniz Cavalcanti, concorda. “O que é ser escravo? É não ter o domínio sobre si. Quando a gente fala em liberdade, a gente fala em liberdade em um sentido muito mais amplo. É a autonomia pessoal. É o livre arbítrio. É liberdade como autodeterminação. Qual é o instrumento atual usado pelo empregador para guardar e manter essa situação de exploração? Não é mais a liberdade de locomoção. O escravo não precisa mais estar acorrentado, não precisa estar enjaulado. Na verdade, o instrumento usado é a vulnerabilidade social, é a pobreza extrema. A pobreza extrema faz com que o trabalhador se perpetue naquela situação, de apropriação, de exploração, característica de escravidão”, diz.
“Qual é o instrumento atual usado pelo empregador para guardar e manter essa situação de exploração? Não é mais a liberdade de locomoção. O escravo não precisa mais estar acorrentado” (Tiago Cavalcanti, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT)

“Não precisamos de portaria alguma. Nem para dizer o que é o trabalho escravo nem para direcionar ou tutelar o trabalho da auditoria do trabalho. Temos uma legislação-modelo. O Brasil é referência em combate ao trabalho escravo”, afirma Cavalcanti.

Procurado, o Ministério do Trabalho diz que a nova portaria, além de restabelecer os conceitos atuais de consenso de todos os órgãos que atuam no combate, prevenção e repressão ao trabalho escravo, “dá um maior enfoque ao pós-resgate, como o encaminhamento dos trabalhadores a assistência social para devido acompanhamento, além da questão da permanência no país do trabalhador imigrante resgatado, tema tratado em resolução do CNIg”.

Infrações
Os dados do levantamento feito pelo G1 revelam também que foram aplicadas, ao todo, 3.683 infrações pelos fiscais durante as blitze realizadas no período.

Levando em conta apenas as operações em que houve resgate, foram aplicadas, em média, 19 infrações em cada uma das visitas. O número contrasta com as críticas dos donos das propriedades de que libertações são efetuadas apenas por um ou outro detalhe encontrado. O próprio presidente Michel Temer, após a publicação da primeira portaria em outubro, deu uma declaração insinuando que já se chegou a ser caracterizado trabalho escravo pela falta de uma saboneteira na frente de trabalho. A operação à qual ele fez menção ocorreu em 2011 e, na verdade, resultou em 44 autos de infração (ou seja, a falta da saboneteira foi apenas um dos itens listados pelos fiscais).

Mas o número de infrações, de fato, varia. O levantamento do G1 mostra que em apenas uma das operações, por exemplo, em uma mineradora de Mato Grosso, no final de 2017, foram aplicados pelo grupo móvel de fiscalização 59 autos de infração, que incluem fatos graves, como deixar de pagar o salário e não equipar o local com equipamentos de primeiros-socorros, e outros mais leves, como deixar de registrar as manutenções preventivas ou corretivas em livro próprio, ficha ou sistema informatizado. Vinte pessoas foram libertadas.

Em uma outra operação, realizada em uma residência em Minas Gerais também no ano passado, em que uma pessoa foi resgatada, apenas um auto foi lavrado. Trata-se, porém, da infração mais importante de todas, a que consta do artigo 444 da CLT: “manter empregado trabalhando sob condições contrárias às disposições de proteção do trabalho, quer seja submetido a regime de trabalho forçado, quer seja reduzido à condição análoga à de escravo”.

O frei Xavier Plassat afirma que falta uma padronização entre as infrações aplicadas pelos fiscais do trabalho. “Essa é uma busca que se faz tecnicamente há muito tempo. A OIT tem orientado e elaborado documentos de suporte para isso”, afirma. “Facilitaria [o trabalho], inclusive evitando que alguns fiscais tenham mão leve quando deveria ser mais pesada, e eventualmente, que eu acho que é mais raro, ter a mão pesada quando não merecia. Daria clareza para as suas partes, fiscal e empregador.”

Ele destaca, porém, que uma necessidade de padronização das infrações não elimina a condição degradante como elemento de caracterização do trabalho escravo. “A crítica maior que a gente escuta é que só uma saboneteira basta, que é subjetivo. Não, a degradação não é um elemento subjetivo. Ela pode ser medida a partir de elementos objetivos. É sempre um conjunto de infrações, entre as quais algumas são maiores, outras são menores. A apreciação do caráter degradante das condições de trabalho só pode se fundamentar na existência simultânea de infrações ofensivas à dignidade do trabalhador. E claro que sabonete no meio é uma coisa irrisória.”

“A crítica maior que a gente escuta é que só uma saboneteira basta, que é subjetivo. Não, a degradação não é um elemento subjetivo. Ela pode ser medida a partir de elementos objetivos. É sempre um conjunto de infrações, entre as quais algumas são maiores, outras são menores” (frei Xavier Plassat, coordenador da campanha contra o trabalho escravo da CPT)

O auditor fiscal Renato Bignami defende a atuação dos colegas e reitera que o mais importante é configurar o trabalho escravo quando for efetuado um resgate. “Se houver condições degradantes, trabalhador sendo tratado como coisa, como mercadoria, quando não há as menores condições de trabalho para ele, isso vai ficar claro nos autos de infração e também no relatório”, diz. “Não é a quantidade de autos de infração que diz exatamente a gravidade da situação. Eu posso ter uma situação gravíssima e, com dois, três autos de infração, descrever essa situação. E pode ser que, com 60 autos de infração, eu não descreva uma situação grave”, diz.

“Há uma regra na CLT bastante flexível já. Ela diz que, para cada infração, o auditor tem que lavrar um auto. Alguns auditores mais conservadores levam essa regra à risca; aqueles auditores um pouco mais flexíveis, não. Esses auditores não lavram um auto para cada infração. Há infrações que são gravíssimas, que são nucleares na definição do trabalho escravo, mas há infrações que são absolutamente leves, como a falta de um livro (de registro), de uma saboneteira. Essas são infrações leves. Mas alguns auditores não se sentem à vontade de não lavrar. Outros auditores têm a visão de lavrar o que é nuclear para descrever o pior da situação. Isso não quer dizer que não há um padrão nos relatórios.”

Questionado, o Ministério do Trabalho diz que uma das preocupações da Secretaria de Inspeção do Trabalho é com a capacitação e desenvolvimento da carreira, especialmente no combate ao trabalho escravo. “Além das capacitações, foram duas no tema apenas em 2017, são realizadas reuniões de equipe, para discussão dos procedimentos. Há também uma Instrução Normativa (IN 91/2011) delineando os procedimentos para o resgate e, inclusive, em razão da Portaria 1293, será editada nova IN, conforme prazo de 60 dias a contar da data de publicação da portaria.”

“Não há diferença de rigidez entre uma ou outra ação, o que há é que em cada caso concreto são constatadas irregularidades diferentes. Quando a equipe é menor, por exemplo, é natural que não consiga verificar a mesma quantidade de infrações que uma equipe maior. E não sendo verificada a irregularidade, não cabe a autuação. Vale ressaltar que muitas vezes, durante a ação fiscal em que há resgate, são verificadas irregularidades trabalhistas que não têm relação com o trabalho análogo ao de escravo, mas que devem ser penalizadas com autuação e devem constar do relatório de fiscalização, ainda que não para fundamentar o resgate, mas para demonstrar o resultado completo da ação fiscal”, informa o ministério.

Tipos de infração
Segundo Xavier Plassat, as infrações relacionadas a carteira de trabalho, FGTS, entre outras, retratam a informalidade do trabalho encontrado nas fiscalizações. “O trabalho escravo floresce e se multiplica especialmente na relação informal de trabalho. Portanto, essas infrações serem tão numerosas não surpreende, mas não são essencialmente os elementos que ajudam a caracterizar o trabalho escravo”, afirma.

Ele destaca que, em seus quase 30 anos de experiência de campo no Brasil, sempre buscou entender as motivações por trás das denúncias. “Sempre que eu pergunto para um trabalhador ‘por que você resolveu finalmente denunciar?’, a palavra que vem é ‘o cara me tratou pior que animal, ele me humilhou’, ‘ele me deu a comida dos porcos’, ‘ele me obrigou a dormir onde dormem os bichos’, ‘ele me deu a água dos animais’. Ou seja, ‘eu não sou nada para ele’.”

Os documentos analisados pelo G1 mostram que água, alojamento e alimentação são, de fato, elementos importantes na determinação do trabalho degradante. São questões físicas que abalam a dignidade dos trabalhadores. Logo em seguida, estão as infrações relacionadas ao trabalho em si, que representam riscos de ferimentos e de doenças, e as de jornada exaustiva.

“Você tem que imaginar que são pessoas que trabalham de mão nua, sem botinas apropriadas, sem usar nenhum equipamento, fazendo serviço arriscado, perigoso, exaustivo”, afirma Plassat.

Para Plassat, 2018 será um ano difícil. “Nós temos pressões fortes de natureza ideológica e política sobre os fiscais para reduzir a intensidade e o rigor da atuação, além de tentativas legislativas ou via decretos para alterar a definição dos instrumentos que nós temos e que fizeram o Brasil uma referência mundial no assunto. Tudo ao mesmo tempo. Ainda bem que temos uma sociedade civil e uma mídia que percebem que o trabalho escravo é um crime tão odioso, tão radical, que deve suscitar a nossa indignação. Devemos continuar lutando contra ele de uma forma absolutamente firme.”

O Ministério do Trabalho diz que são muitos os desafios, “como, por exemplo, o recebimento mais qualificado de informações/denúncias”. “A Secretaria de Inspeção tem investido em desenvolvimento tecnológico e de inteligência para buscar indícios de irregularidades sem a necessidade de denúncias ou rastreamento físico, inclusive com o cruzamento de dados das atividades econômicas e a ajuda da ferramentas de big data.”

Questionado sobre a redução dos grupos móveis de fiscalização (são quatro hoje; o país já teve nove), o ministério diz: “Claro que havendo mais auditores fiscais do trabalho dedicados ao tema, o combate se torna mais efetivo, mas atualmente o número de auditores está reduzido. O ex-ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira solicitou ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão autorização para realização de concurso público para preenchimento de 1.190 vagas do cargo de auditor fiscal do trabalho”.

Apesar disso, a pasta ressalta que ações que antes eram realizadas exclusivamente pelos grupos móveis atualmente também são realizadas pelas superintendências do Trabalho, “o que compensa a redução do número de equipes móveis”.

Fonte: G1

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