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Homens armados, pouca comida: empresa de ex-Miss MT é punida por trabalho escravo

Taiany França Zimpel segurando coroa de Miss Mato Grosso e, ao lado, condições precárias encontradas por fiscais em fazenda de Nova Maringá (MT)
Taiany França Zimpel segurando coroa de Miss Mato Grosso e, ao lado, condições precárias encontradas por fiscais em fazenda de Nova Maringá (MT)Imagem: Reprodução/Redes Sociais/MPT-MT
Entenda

A ex-Miss Mato Grosso e os donos de uma fazenda no interior do estado terão de pagar R$ 1,6 milhão após uma operação resgatar 20 trabalhadores em condições análogas à escravidão.

As vítimas haviam sido contratadas pela T. F. Zimpel Ltda., empresa do setor madeireiro administrada por Taiany França Zimpel. O MPT apontou responsabilidade solidária entre a companhia da ex-Miss Mato Grosso e os proprietários da fazenda Eliane Raquel e Quinhão, que, segundo o órgão, exploravam a área e comercializavam a madeira extraída.

Taiany venceu o concurso Miss Mato Grosso em 2016 e mais recentemente se apresenta como Miss Grand Mato Grosso 2024 e Miss MT Internacional. Representante do município de Sorriso, ela aparece em suas redes sociais participando de festas, passeios ao ar livre e também montando a cavalo.

A empresa da ex-Miss se apresenta nas redes como especializada em desmatamento e venda de lenha. As postagens divulgadas no Facebook de Taiany oferecem lenha nativa de “alta qualidade”, destacam serviços de desmatamento, enleiramento (empilhagem), aração e gradagem (desfazer torrões de terra) e até convocam caminhões para transporte da madeira, com contatos que coincidem com os dados oficiais da firma.

Taiany em dois momentos: como Miss Mato Grosso 2016 e em atividade no campo
Taiany em dois momentos: como Miss Mato Grosso 2016 e em atividade no campoImagem: Reprodução/Redes Sociais

Condições degradantes

Operação mobilizou quatro órgãos federais e estaduais em Nova Maringá (MT). A ação, realizada em 15 de setembro, envolveu o MPT-MT (Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso), o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), a Polícia Federal e a Defensoria Pública da União. A fiscalização ocorreu na Fazenda Eliane Raquel e Quinhão, a cerca de 400 km de Cuiabá, onde foi resgatado um adolescente de 17 anos entre os 20 trabalhadores submetidos a condições degradantes.

Na fazenda, os alojamentos eram improvisados, sem higiene e em condições de risco. Treze trabalhadores dividiam colchões velhos sobre tábuas e toras, em barracos de lona e madeira, enquanto outros dormiam em redes ao lado de tambores de óleo e combustível, sem ventilação.

Água para consumo era imprópria e a comida, escassa. Os trabalhadores se banhavam em córrego com água turva e faziam necessidades no mato. A alimentação era precária, com relatos de que sobreviveram de açaí e caça de animais silvestres.

Houve ainda relatos de intimidação e restrição de liberdade. Segundo o MPT-MT, homens armados circulavam pelo local, aumentando a vulnerabilidade dos trabalhadores. Nenhum deles tinha carteira assinada, salários pagos ou equipamentos de proteção.

Alojamento improvisado encontrados por fiscais em fazenda de Nova Maringá (MT) foi considerado insalubre
Alojamento improvisado encontrados por fiscais em fazenda de Nova Maringá (MT) foi considerado insalubreImagem: Divulgação/MPT-MT

Reparações financeiras

Empresa e fazenda assumiram responsabilidade solidária e terão de pagar mais de R$ 1,6 milhão em reparações. Segundo o MPT-MT, o montante inclui R$ 418 mil em verbas salariais e rescisórias, R$ 200 mil em danos morais individuais (R$ 10 mil para cada trabalhador resgatado) e R$ 1 milhão em dano moral coletivo, destinado ao Projeto Ação Integrada – Mato Grosso, voltado à reinserção social de vítimas de trabalho escravo.Continua após a publicidade

Os dois TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) firmados detalham obrigações específicas para cada parte. O documento assinado pela T. F. Zimpel Ltda. foi classificado como emergencial e reparatório. Já o termo da Fazenda Eliane Raquel e Quinhão prevê R$ 500 mil em indenização por dano moral coletivo, a serem pagos em parcelas, além de medidas estruturais para garantir alojamento digno, fornecimento de alimentação e água, condições mínimas de higiene, formalização dos contratos e fiscalização sobre terceirizadas.

Colchões e camas improvisadas usadas por trabalhadores resgatados em fazenda
Colchões e camas improvisadas usadas por trabalhadores resgatados em fazendaImagem: Divulgação/MPT-MT

O que diz o MPT

Para o procurador Gustavo Rizzo Ricardo, todos os elementos do crime de trabalho escravo ficaram configurados. Ele afirmou que a situação violava o princípio da dignidade da pessoa humana, ao negar direitos básicos como saúde, higiene, alimentação e segurança. “O trabalho análogo ao escravo não será tolerado pelo Ministério Público do Trabalho e casos como este demonstram que o seu enfrentamento exige ação coordenada e imediata”, declarou.

Além dos TACs, autos de infração foram lavrados pela fiscalização. Cada um dos 20 trabalhadores recebeu direito a seguro-desemprego especial, com três parcelas de um salário-mínimo. O MPT-MT seguirá monitorando o cumprimento dos acordos.

O que diz a empresa

A T. F. Zimpel sustenta que a companhia não tem fazenda e apenas prestou serviços à área rural. Em nota, a empresa afirmou que terceirizou a mão de obra, não contratou diretamente os trabalhadores e colaborou com as autoridades desde o início da operação, fornecendo documentos e apoio ao acolhimento dos resgatados.

O comunicado afirma que a assinatura do TAC não representa admissão de culpa. “O termo teve caráter emergencial e reparatório, sem confissão de culpa, pois mesmo sem ser responsável direta pelos funcionários, preferiu garantir o suporte imediato dos colaboradores, resguardando-se no direito de regresso ao contratante”, diz a nota.

A empresa também criticou reportagens que vinculam o caso à imagem da Miss Mato Grosso. “Serão tomadas todas as medidas legais cabíveis quanto a publicações que distorçam os fatos, em especial àquelas que liguem os fatos à pessoa da Miss Mato Grosso”, afirmou.

O UOL entrou em contato com o advogado Vinícius Bertolo Gonçalves, citado nos TAC como advogado de defesa da empresa. Até a publicação desta reportagem ele não havia respondido às mensagens encaminhadas via WhatsApp solicitando informações.

Anúncios publicados no Facebook de Taiany Zimpel oferecem serviços de desmatamento e venda de lenha nativa em Mato Grosso.
Anúncios publicados no Facebook de Taiany Zimpel oferecem serviços de desmatamento e venda de lenha nativa em Mato Grosso.Imagem: Reprodução/Redes Sociais

O que diz a defesa da fazenda

A defesa da Fazenda Eliane Raquel e Quinhão contesta as acusações e atribui a responsabilidade a empresas terceirizadas. O advogado Renato Negrão Barbosa Junior afirmou que os representantes da propriedade rural “desconheciam o cenário e condições apuradas pelo MPT” e que a situação teria sido criada “dias antes da operação, posteriormente à última visita em loco”.

Segundo ele, a fazenda contratou uma empresa com autorização da Sema (Secretaria de Meio Ambiente) de Mato Grosso para atuar na abertura de área e preparo de solo. “Foi entabulado negócio jurídico oneroso, em que a empresa se responsabilizaria por toda a atividade, apresentando documentos, registros, encargos e verbas por toda operação, sendo este contrato firmado de forma válida e aceito pelo MPT”, disse.

Barbosa Junior argumenta que a fazenda colaborou com as autoridades e até pagou verbas rescisórias que não seriam de sua responsabilidade direta. “Os responsáveis se colocaram à disposição do MPT e do Ministério do Trabalho, auxiliando com informações, contratos e documentos. Ainda, arcaram com o pagamento – mesmo não sendo de sua responsabilidade direta – de toda a verba rescisória dos prestadores de serviço da empresa terceirizada, demonstrando, portanto, sua boa-fé na condução do ato”, afirmou.

UOL entrou em contato com a Sema e com a Polícia Federal, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

Fonte: UOL