Homens armados, pouca comida: empresa de ex-Miss MT é punida por trabalho escravo

Entenda
A ex-Miss Mato Grosso e os donos de uma fazenda no interior do estado terão de pagar R$ 1,6 milhão após uma operação resgatar 20 trabalhadores em condições análogas à escravidão.
As vítimas haviam sido contratadas pela T. F. Zimpel Ltda., empresa do setor madeireiro administrada por Taiany França Zimpel. O MPT apontou responsabilidade solidária entre a companhia da ex-Miss Mato Grosso e os proprietários da fazenda Eliane Raquel e Quinhão, que, segundo o órgão, exploravam a área e comercializavam a madeira extraída.
Taiany venceu o concurso Miss Mato Grosso em 2016 e mais recentemente se apresenta como Miss Grand Mato Grosso 2024 e Miss MT Internacional. Representante do município de Sorriso, ela aparece em suas redes sociais participando de festas, passeios ao ar livre e também montando a cavalo.
A empresa da ex-Miss se apresenta nas redes como especializada em desmatamento e venda de lenha. As postagens divulgadas no Facebook de Taiany oferecem lenha nativa de “alta qualidade”, destacam serviços de desmatamento, enleiramento (empilhagem), aração e gradagem (desfazer torrões de terra) e até convocam caminhões para transporte da madeira, com contatos que coincidem com os dados oficiais da firma.

Condições degradantes
Operação mobilizou quatro órgãos federais e estaduais em Nova Maringá (MT). A ação, realizada em 15 de setembro, envolveu o MPT-MT (Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso), o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), a Polícia Federal e a Defensoria Pública da União. A fiscalização ocorreu na Fazenda Eliane Raquel e Quinhão, a cerca de 400 km de Cuiabá, onde foi resgatado um adolescente de 17 anos entre os 20 trabalhadores submetidos a condições degradantes.
Na fazenda, os alojamentos eram improvisados, sem higiene e em condições de risco. Treze trabalhadores dividiam colchões velhos sobre tábuas e toras, em barracos de lona e madeira, enquanto outros dormiam em redes ao lado de tambores de óleo e combustível, sem ventilação.
Água para consumo era imprópria e a comida, escassa. Os trabalhadores se banhavam em córrego com água turva e faziam necessidades no mato. A alimentação era precária, com relatos de que sobreviveram de açaí e caça de animais silvestres.
Houve ainda relatos de intimidação e restrição de liberdade. Segundo o MPT-MT, homens armados circulavam pelo local, aumentando a vulnerabilidade dos trabalhadores. Nenhum deles tinha carteira assinada, salários pagos ou equipamentos de proteção.

Reparações financeiras
Empresa e fazenda assumiram responsabilidade solidária e terão de pagar mais de R$ 1,6 milhão em reparações. Segundo o MPT-MT, o montante inclui R$ 418 mil em verbas salariais e rescisórias, R$ 200 mil em danos morais individuais (R$ 10 mil para cada trabalhador resgatado) e R$ 1 milhão em dano moral coletivo, destinado ao Projeto Ação Integrada – Mato Grosso, voltado à reinserção social de vítimas de trabalho escravo.Continua após a publicidade
Os dois TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) firmados detalham obrigações específicas para cada parte. O documento assinado pela T. F. Zimpel Ltda. foi classificado como emergencial e reparatório. Já o termo da Fazenda Eliane Raquel e Quinhão prevê R$ 500 mil em indenização por dano moral coletivo, a serem pagos em parcelas, além de medidas estruturais para garantir alojamento digno, fornecimento de alimentação e água, condições mínimas de higiene, formalização dos contratos e fiscalização sobre terceirizadas.

O que diz o MPT
Para o procurador Gustavo Rizzo Ricardo, todos os elementos do crime de trabalho escravo ficaram configurados. Ele afirmou que a situação violava o princípio da dignidade da pessoa humana, ao negar direitos básicos como saúde, higiene, alimentação e segurança. “O trabalho análogo ao escravo não será tolerado pelo Ministério Público do Trabalho e casos como este demonstram que o seu enfrentamento exige ação coordenada e imediata”, declarou.
Além dos TACs, autos de infração foram lavrados pela fiscalização. Cada um dos 20 trabalhadores recebeu direito a seguro-desemprego especial, com três parcelas de um salário-mínimo. O MPT-MT seguirá monitorando o cumprimento dos acordos.
O que diz a empresa
A T. F. Zimpel sustenta que a companhia não tem fazenda e apenas prestou serviços à área rural. Em nota, a empresa afirmou que terceirizou a mão de obra, não contratou diretamente os trabalhadores e colaborou com as autoridades desde o início da operação, fornecendo documentos e apoio ao acolhimento dos resgatados.
O comunicado afirma que a assinatura do TAC não representa admissão de culpa. “O termo teve caráter emergencial e reparatório, sem confissão de culpa, pois mesmo sem ser responsável direta pelos funcionários, preferiu garantir o suporte imediato dos colaboradores, resguardando-se no direito de regresso ao contratante”, diz a nota.
A empresa também criticou reportagens que vinculam o caso à imagem da Miss Mato Grosso. “Serão tomadas todas as medidas legais cabíveis quanto a publicações que distorçam os fatos, em especial àquelas que liguem os fatos à pessoa da Miss Mato Grosso”, afirmou.
O UOL entrou em contato com o advogado Vinícius Bertolo Gonçalves, citado nos TAC como advogado de defesa da empresa. Até a publicação desta reportagem ele não havia respondido às mensagens encaminhadas via WhatsApp solicitando informações.

O que diz a defesa da fazenda
A defesa da Fazenda Eliane Raquel e Quinhão contesta as acusações e atribui a responsabilidade a empresas terceirizadas. O advogado Renato Negrão Barbosa Junior afirmou que os representantes da propriedade rural “desconheciam o cenário e condições apuradas pelo MPT” e que a situação teria sido criada “dias antes da operação, posteriormente à última visita em loco”.
Segundo ele, a fazenda contratou uma empresa com autorização da Sema (Secretaria de Meio Ambiente) de Mato Grosso para atuar na abertura de área e preparo de solo. “Foi entabulado negócio jurídico oneroso, em que a empresa se responsabilizaria por toda a atividade, apresentando documentos, registros, encargos e verbas por toda operação, sendo este contrato firmado de forma válida e aceito pelo MPT”, disse.
Barbosa Junior argumenta que a fazenda colaborou com as autoridades e até pagou verbas rescisórias que não seriam de sua responsabilidade direta. “Os responsáveis se colocaram à disposição do MPT e do Ministério do Trabalho, auxiliando com informações, contratos e documentos. Ainda, arcaram com o pagamento – mesmo não sendo de sua responsabilidade direta – de toda a verba rescisória dos prestadores de serviço da empresa terceirizada, demonstrando, portanto, sua boa-fé na condução do ato”, afirmou.
O UOL entrou em contato com a Sema e com a Polícia Federal, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.