IA prometeu te dar mais tempo livre, mas está entregando burnout

É tanta promessa furada que fazem sobre IA que já não sei qual mais me irrita. Mas certamente tem uma que vale a pena discutirmos hoje: a ilusão de que a IA liberará tempo para aproveitarmos melhor o ócio.
Você já deve ter ouvido isso de algum guru desavisado na internet. Eu mesmo já ouvi inúmeras vezes. O argumento é mais ou menos assim: se com IA você faz em 5 horas uma atividade que antes fazia em 8, agora restam 3 horas para aproveitar melhor seu dia.
Mas vamos pensar juntos: você tem trabalhado menos e ido mais para a praia?
Eu adoraria que essa possibilidade fosse real, afinal a crise do ócio está matando a imaginação coletiva da sociedade. O fato é que as pessoas estão trabalhando mais. Não porque a tecnologia é incapaz de fazer as coisas, mas justamente porque a IA já realiza bem uma série de tarefas que há uma corrida insana para o ganho de produtividade.
Tempo livre ou tempo para mais trabalho?
Não tenho dúvida que, com o uso da IA, muitas pessoas realizam em 5 horas uma atividade que antes demoraria em 8 horas. Mas o que elas estão fazendo com as 3 horas que ganharam?
Alguns profissionais conseguem migrar para tarefas mais criativas e estratégicas, o que é positivo, mas outras estão absorvendo cada vez mais responsabilidades e funções. Se o principal mantra do mercado hoje é o ganho de produtividade com IA, então qualquer tempo livre será preenchido para aumentar ainda mais a produção individual.
E, no coletivo, as empresas estão em um verdadeiro estado de desespero. Todas querem promover a adoção da IA a qualquer custo com medo de ficar obsoleta, o que é um receio genuíno. A tecnologia vai transformar a forma como trabalhamos, então a organização que não se adaptar será atropelada.
A questão é como esse processo está sendo conduzido. Tem muita empresa cobrando o uso da IA por seus funcionários, mas sem ter uma estratégia clara, uma política de uso ou, pior ainda, sem oferecer treinamento e condições necessárias para facilitar essa adoção.
O resultado é uma cobrança em várias frentes: a empresa demanda otimização e aumento de produtividade, enquanto as pessoas individualmente se pressionam ainda mais por uma rápida adaptação a um cenário bastante complexo e incerto.
Essa é uma vibe que está rolando até mesmo com quem trabalha no desenvolvimento da própria IA. A pressão por lançar novas funcionalidades, aprimorar os modelos e buscar eficiência interna, somada às demissões em massa, define bem o tom do momento.
Nos últimos meses, tenho conversado bastante com profissionais de diferentes big techs que me contaram como o ambiente de trabalho se degradou depois que a corrida pela IA virou o jogo dessas empresas. Alguns deles, inclusive, relataram crises mais severas de saúde mental, chegando até mesmo ao burnout.
“A pressão por provar que a IA tem que funcionar faz criar uma sensação de incerteza muito grande, muitas vezes atropelando valores que levaram tempo para serem criados na empresa e tratando casos de burnout como meras casualidades”, me contou um funcionário de uma das big techs.
Nesta semana, enquanto pensava em escrever esta coluna, se tornou pública a notícia de um engenheiro da Microsoft que foi encontrado morto no campus da própria empresa, o que levantou um debate sobre a saúde mental de profissionais na área de tecnologia.
O Vale do Silício, antes considerado a meca da inovação e de good vibes do trabalho, está sendo duramente criticada por muitas startups promoverem a cultura 996 – trabalho das 9h às 21h, seis dia por semana -, uma prática que, embora tenha começado na China, foi banida no país.Continua após a publicidade
Enquanto isso, no Brasil, a crise de saúde mental com impacto real na vida dos trabalhadores fica mais evidente. Dados do Ministério da Previdência Social, obtidos com exclusividade pelo G1, mostram que só em 2024 foram quase meio milhão de afastamentos por saúde mental. De 2022, ano de lançamento do ChatGPT, até agora o aumento de casos foi de 134%.
É claro que não dá para atribuir nenhuma causalidade entre as duas variáveis, mas também não dá devemos fechar os olhos para a influência que a já IA exerce na reconfiguração do mercado de trabalho. O problema não é a tecnologia em si, mas a dinâmica social e econômica que impõe como ela deve ser adotada, fazendo com que a gente entre no ritmo das máquinas, e não o contrário.
Quem sabe um dia a IA nos ajude a ampliar o tempo para imaginar, descansar e criar. A máquina a serviço do nosso ócio criativo. Hoje, porém, um saldo não pode ser ignorado: ansiedade, pressão e burnout. Um alerta claro que escancara os caminhos que estamos escolhendo para adotar a tecnologia.
Fonte: Coluna de Diogo Cortiz em TILT/UOL