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Luciana Barreto: ‘Sofro ataque de ódio por ser mulher negra e jornalista’

Âncora da CNN Brasil, Luciana Barreto é uma dos profissionais que participarão do evento Afro Presença, que começa nesta quarta-feira (8), virtualmente, com o objetivo de conectar pessoas e empresas para a inclusão de jovens negros no mercado de trabalho.

Promovido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT-SP) e pela Rede Brasil do Pacto Global, da ONU, o projeto tem como tema desta edição “Derrube muros, abrindo portas”. Propósito que, de alguma forma, faz parte da carreira de Luciana, também mestra em Relações Étnico-Raciais, pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ).

“Se chego em um evento corporativo como convidada, e só eu sou negra ali, vou no organizador e falo: ‘Não tem um negro além de mim, que estranho’. Também já fiz apresentação de evento chamando toda a direção de empresa, formada por homens, no palco e brincando: ‘Mas cadê as mulheres aqui?'”, disse, em entrevista para Universa.

A jornalista participará do debate do Afro Presença no último dia do evento, sexta-feira, em painel sobre o mercado de trabalho. Os painéis serão realizados virtualmente e de forma gratuita. Além das conversas, haverá a oferta de mais de 6 mil vagas de empregos para a população negra inscrita no evento, de acordo com a organização.

Confira os principais trechos da entrevista com Luciana a seguir:

Universa – Por que a inclusão do jovem negro no mercado de trabalho é uma pauta tão antiga?

Luciana Barreto – A situação do jovem é mais agravada com a questão racial. E ela que está no cerne da questão. É o jovem negro que convive com os piores índices de educação, a evasão escolar é maior entre eles. Além disso, o Estado é negligente com escolas da periferia urbana e da área rural. E há exemplos: um jovem da periferia do Rio de Janeiro, no Complexo da Maré, fica de dez a 15 dias por ano em média sem ir à escola por conta de tiroteio, dizem os estudos.

Além disso, há falta de políticas públicas, e não se faz questão nenhuma de se ter empregabilidade para os jovens negros. Por fim, o mercado seleciona o estudante e o recém-formado.

De que forma eventos como o Afropresença contribuem para mudar essa realidade?

Empresas multinacionais que se instalaram no Brasil têm vindo com a preocupação do ESG — uma nova pauta, de meio ambiente, governança social. E isso traz uma preocupação para o mercado de trabalho que já vem sendo mostrada pelo movimento negro desde a década de 1970.

Vejo que estamos em um momento propício de engrossar essa discussão, aliás, aproveitando que algumas empresas, seja por boa vontade, para ter lucro ou com medo de perder influência, estão buscando gente que já pensa e estuda isso. Eventos como o Afropresença ajudam nesse encontro do desejo de mudança dos movimentos sociais com o que tem acontecido no mundo corporativo.

Ao acessarem faculdade, postos no mercado de trabalho, pessoas negras costumam dizer que se sentem sozinhas nos lugares. Você fez uma publicação no Twitter falando que já passou por isso em uma premiação. Como lida com a questão?

Em lugares de privilégio social e financeiro, não há a presença do negro e ouço muitos relatos de colegas que se sentem sozinhos apesar de estarem em um coletivo. Nesta situação que vivi, fui receber um prêmio e a plateia era branca. Lá atrás, três garçons faziam o gestual de aplauso, como se dissessem: ‘É isso aí’. Um sentimento de coletividade que nós temos.

Já fui calada sobre isso, hoje se chego em um evento corporativo como convidada, chego perto do organizador e falo: ‘Não tem um negro além de mim, que estranho’. Também já fiz apresentação de evento chamando toda a direção de empresa, formada por homens, no palco e brincando: ‘Mas cadê as mulheres aqui?’. Tento aproveitar essas oportunidades para criar um incômodo e um movimento propositivo, falando sobre apresentar pessoas, soluções.

Sua tese do mestrado em relações étnico-raciais foi sobre o ódio contra pessoas negras na internet. Você já foi alvo de haters?

No mínimo uma vez por semana sou alvo de discurso de ódio. Atrelado ao fato de eu ser jornalista ou ser mulher negra. Só apago o comentário se for algo muito chulo, mas costumo deixar para a pessoa sofrer constrangimento.

Pelo estudo que fiz, o ódio contra negros é tão forte que mesmo no ambiente de polarização política, foi o maior número de casos de discurso de ódio na internet calculado pela Safernet em 2018. Sempre que as pessoas veem que estão perdendo privilégio ou que temos avanços, ele reaparece.

Minha posição incomoda muito, porque está ligada ao poder e é atrelada a pessoas brancas. E o discurso de ódio sempre é para tentar fazer você desistir: além de mim, são atacadas modelos negras, jogadores de futebol que têm posições privilegiadas, advogados”.

Como a militância negra que você exerce e sua atuação no jornalismo dialogam?

Não dá para dissociar. Olhar para pautas negligenciadas está no DNA da minha vida jornalística, entrei na profissão mirando nisso. Até hoje não consigo estar em uma Redação sem levantar esse debate e mostrar que quando o jornalismo é negligente com pautas e grupos importantes, ele é capenga.

“Seja trabalhando em emissora pública ou em privada, que também é concessão pública, o jornalismo tem obrigação com a população. Faço assim, não sei fazer de outro jeito — e, para fazer de outro jeito, tem muita pessoa já [risos].

Como recupera as energias diante de tantas questões raciais, sociais e políticas que enfrentamos no Brasil?

Como mulher negra, já sei que a tentativa de aniquilamento de determinadas pessoas é eterna e constante no Brasil. A gente não consegue descansar. Mas, todas as vezes que estou com meus pares, mulheres e homens negros, ou com grupos como de pessoas LGBTQIA+, sempre recomendo que descansem, bebam água, cuidem da saúde mental, fiquem de pé.

Um conhecido me contou uma vez que estava sofrendo com algo no emprego e que eu poderia ajudar ou ele sair de lá. Disse para ele: ‘Sua revolução é ficar empregado’, e fui ajudá-lo. Porque tem um momento na vida em que você pode brigar mais. Uma pessoa rica, por exemplo, não tem que lutar mais pelo pão do dia a dia e pode pensar nisso.

Você está nesse momento?

Respondendo, não sou milionária [risos], mas posso dizer que as pessoas já sabem meu discurso e tenho certo apoio para falar algumas coisas e me posicionar. Também já trabalhei em locais em que era editora executiva, além de âncora, e já pude ter mais poder. Isso dá um conforto para trabalhar com as pautas negligenciadas, as quais já me referi. Seja trabalhando em emissora pública ou em privada, que também é concessão pública, o jornalismo tem obrigação com a população. Faço assim, não sei fazer de outro jeito — e, para fazer de outro jeito, tem muita pessoa já [risos].

Mulheres negras quase sempre precisam se fortalecer para ter autoestima, em vários âmbitos, por causa do racismo. Como foi esse processo para você?

Me debruço sobre questões raciais há alguns anos. Então, quando recebo discurso de ódio, já até sei como serão os elementos. Meu mestrado é sobre análise de discurso, aliás. O hater tenta nos desumanizar — por isso, com frequência, compara a macaco —, traz a questão da estética negra como inferior à branca, criticando o cabelo.

Há ainda uma tentativa de eliminação do grupo; quando fazem comentários do tipo “Por que não atiraram em todos?” ou “Por que o navio em que vieram não afundou?”. Quando você entende que o objetivo da pessoa é desequilibrar para que você não esteja mais ali, esses elementos não funcionam mais.

Um ano depois do “quadradinho preto” nas redes, da morte de George Floyd, qual é sua avaliação sobre a cobertura da imprensa brasileira sobre questão racial?

A imprensa sofreu um choque naquele momento, porque as pessoas perceberam que não sabiam falar de algumas questões, que há ausência de negros nas Redações… Foi um constrangimento, mas positivo e propositivo.

Agora, o é momento de atenção, o que tem sido feito pelos movimentos negros e de ativismo. É preciso reverberar, para não voltarmos ao mesmo lugar. E é isso que acontece na história do Brasil, geralmente nos repetimos.

Mais pessoas brancas estão falando sobre “racismo estrutural”. Outras, admitindo que são racistas. Como vê esse movimento?

Negar que existe racista no Brasil é impossível. Tanto existem que, não à toa, há pessoas com suástica pelas ruas neste momento, existe um grupo que se sente impune para praticar o crime do racismo.

Alguns racistas estão saindo para mostrar a cara, e em algum momento é necessário fazer valer a lei. Vemos que a quantidade de denúncias de racismo cresce a cada ano. Há 15 anos, tudo era qualificado como injúria racial e não acontecia absolutamente nada. Hoje, há delegados aceitando como crime de racismo. A luta nunca parou.

Fonte: Universa/UOL