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‘Meu marido foi elogiado. Eu, demitida’: mães atípicas falam de carreira

Conciliar maternidade e trabalho faz parte do universo da maioria das mulheres que decidem ter filhos. Agora, imagine quem, no meio dessa gincana diária, tem que encaixar na agenda sessões de terapia, reabilitação, suporte para rotinas diárias e outras questões que fazem parte do pacote da maternidade atípica. Para essas mães cujo filho, filha, têm alguma deficiência, síndrome rara e/ou doença crônica ainda não existe nenhuma lei específica que garanta redução de jornada de trabalho ou maior número de faltas e aí tudo se complica.

“Não há previsão legal para redução da jornada sem prejuízo do salário nessas hipóteses, mas algumas servidoras públicas, por conta de lei específica, acabam conseguindo quando o horário da repartição coincide com o escolar”, diz Carla Ferreira, especialista em direito trabalhista do Urbano Vitalino Advogados, de Recife.

Com relação às faltas, só é possível não ir trabalhar sem desconto salarial somente um dia por ano para acompanhar crianças até seis anos. Uma portaria publicada neste ano beneficia as mães que precisam acompanhar filhos na UTI com a prorrogação do salário maternidade. Diante de pouco respaldo e por muitas vezes da incompreensão da chefia, muitas mulheres param de trabalhar. Conversamos com três mães atípicas que contam sobre os desafios de se manter na ativa e sobre escolhas feitas por elas e pelos outros.

Desisti e descobri como era a vida sem trabalhar

“Antes da gestação da minha primeira filha, Clara, hoje com 9 anos, eu trabalhava em três universidades renomadas dando aula de gastronomia. Trabalhava sempre os três períodos com alguns horários vagos durante a semana. Logo que descobri a gestação, deixei um para não pegar estrada. O comunicado sobre minha gravidez com os gestores foi tranquilo, foram bem receptivos. Coordenadores e colegas compreensivos.

Clara nasceu de sete meses. A paralisia cerebral dela só foi diagnosticada quando ela tinha dez, pois começamos a reparar em alguns aspectos do desenvolvimento que não aconteciam. Foi uma saga. Quando ela tinha quatro meses eu voltei da licença maternidade. Entre os nove e dez meses, deixei de dar muita aula e pedir para outros professores me substituírem por conta dos exames e consultas. Lembro do dia em que recebi a ressonância dela e parecia que ela não ia andar, não ia falar, foi um desespero. Naquele dia não tinha condição de trabalhar, chorei muito e pedi para não ir.

A coordenadora me chamou e disse que aquilo não poderia acontecer. Em outro dia, eu tinha que entregar um diário e atrasei duas horas. Fui demitida, me disseram que era melhor eu me dedicar à minha filha.

Eu já estava arrasada com o diagnóstico, não sabia o que seria da nossa vida. E, na hora em que eu preciso enfrentar uma realidade totalmente nova para mim, sou demitida. Nos dois anos seguintes consegui continuar trabalhando, a Clara ficava com uma babá. Era a maior correria, vai em uma aula, leva no médico, duas faculdades e terapias quase todos os dias. Comecei a ficar preocupada de ela ficar muito tempo com outra pessoa sem eu saber se a reabilitação, que era para ser feita em casa, estava sendo feita. Também não pude mais ir a congressos e estudar para me aprimorar. Desisti e fui tentar descobrir como era a vida sem trabalhar.

Muitas vezes me senti inútil. Hoje, só ministro alguns cursos particulares. A Clara tem uma rotina pesada pela manhã. Faz fisioterapia, terapia ocupacional, reabilitação visual e psicopedagogia, além de natação. Depois do almoço, tem a escola.

Agora, não sofro mais pelas questões dela, pelo fato de ela usar andador. É difícil aceitar o outro, tive uma criação capacitista, a sociedade é capacitista.

Um dos motivos que quis parar foi também para estudar sobre paralisia cerebral. Tive outra filha, Cora, de 3 anos, e meu olhar é voltado para elas. Às vezes, sinto vontade de voltar, mas não tem como, preciso me dedicar mais à Clara principalmente pois quero que ela tenha autonomia, mas agora ela ainda precisa bastante de mim.” Luciana Prudente, 41 anos, professora de gastronomia, Goiânia, Goiás

Demitida duas vezes por ser mãe

“Quando engravidei, tinha 27 anos, trabalhava em um escritório de advocacia bem grande, cuidava de mais de 2.000 processos. Havia três anos que estava lá e ralava muito. Eu era e sou workaholic, então, meu horário era das 9h às 19h, mas sempre chegava às 7h para trabalhar com silêncio e ficava até as 21h pelo mesmo motivo. Fiquei grávida e apavorada pois não achei que fosse ser tão rápido.

Quando eu descobri que eram três, passei a sofrer assédio da minha coordenadora. Ela falava que eu tinha escondido que havia feito fertilização. Mandava mensagem no celular: ‘Gravidez não é doença’. Um dia eu passei muito mal de nervoso e fui para o hospital. Ela falou: ‘Se você tiver qualquer chilique, tenha daqui pra fora’.

O Benício, o Lucas e o Bernardo, hoje com três anos, nasceram prematuros. Além dos três meses de licença, peguei férias e quinze dias de amamentação. Só que o Lucas ficou 90 dias internado, e eu junto. Quando acabou o período, eles sugeriram que eu fizesse home office. Dois meses depois, porém, pediram para eu voltar ao escritório. Quando cheguei, havia um estagiário no meu lugar e que me dava ordens. Pagamos uma babá durante um ano e lá se foi toda nossa poupança. Depois, os três foram diagnosticados com autismo e daí me disseram que era melhor parar de trabalhar e que meu marido, Gustavo, teria que arrumar um emprego melhor para sustentar a casa.

É muito doloroso perceber as diferenças. Meu marido nunca foi questionado com relação a faltas ou mudanças de horário. Um dos pequenos foi internado aos sete meses e ele acompanhou. Quando ele voltou ao escritório foi ovacionado como o melhor pai do mundo.

Consegui me recolocar em outro escritório e a princípio todo mundo foi receptivo. Eu fazia um horário bom, flexível. Mas houve uma mudança no RH e a responsável passou a falar de maneira sutil que eu não me encaixava mais no perfil da empresa. Contrataram um advogado mais novo para trabalhar comigo, tiraram os projetos que eu cuidava até que um gestor me chamou para dar a notícia da demissão. Como no outro emprego, já estava na cara, mas mesmo assim foi um baque.

“Não faz nem dois meses, mas estou muito feliz em acordar com meus filhos e desafogar minha mãe, que mora comigo e me ajuda. A rotina aqui é puxada. Já consegui pegar alguns clientes fixos e vou estudar e me dedicar a ser advogada de causas de pessoas com deficiência. Devo continuar trabalhando no esquema home office, como autônoma. Talvez o destino de toda mãe atípica seja se reinventar para colocar dinheiro dentro de casa.” Vanessa Sicchieri, 32 anos, advogada, São Paulo (SP).

O diagnóstico no pós-parto e a nova rotina

“Sou coordenadora de marketing de uma grande empresa. Anunciei minha gravidez ao gestor em fevereiro de 2020 e em março começou a quarentena. A gente iniciou o home office e com a possibilidade de flexibilizar os horários para fazer exames e ir ao médico. Fiz todo pré-natal mas não foi diagnosticado nada no Guilherme, hoje com um ano. Ficamos sabendo no momento em que ele nasceu da microcefalia.

Depois da cesárea, vieram falar comigo: ele tinha nascido bem, porém com microcefalia. Na hora, não fez nenhum sentido, até então, minha gravidez tinha sido ótima. Fiz todo acompanhamento, todos exames, não havia aparecido nada. Ele ficou uma semana na UTI para investigação e fechar o diagnóstico, tentar ver as causas. Os exames genéticos demoravam mais e, então, fomos para casa.

Neste período de adaptação, me tornar não só mãe, mas uma mãe atípica, foi muito difícil. A gente achou que viveria uma coisa e foi outra completamente diferente. Seria complicado de qualquer jeito, mas foi no meio da pandemia, sem a família. Era tudo completamente novo. Precisamos de cara começar a procurar médicos e ver terapias para saber o que poderíamos fazer por ele.

“Não tínhamos noção e o que a gente lia na internet era desesperador. Com quinze dias já estávamos na fisioterapia, mas ele era muito pequeno, tirar de casa na pandemia, no frio. Tínhamos que pesar sempre, tomar decisões. Começamos a fazer terapia para saber como lidar com tudo ao mesmo tempo e com a quebra de expectativa.

Na época, eu nem conseguia falar direito no assunto. Com o tempo, fui falando dos desafios e ela foi super receptiva. Aliás, todos que trabalhavam comigo. Com a terapia dele e a nossa, conseguimos nos abrir para tudo, até para dar mais amor para ele. Era difícil no começo, havia medo de que ele não sobrevivesse. Me arrependo de não ter estado mais presente por inteiro na época, sinto culpa. Hoje é um amor gigantesco, uma coisa absurda.

Cada conquista é uma alegria gigante e as coisas se adaptam. Sobre os desafios de conciliar tudo, o que mais me ajudou foi ter uma rede de apoio. Eu conseguiria trabalhar hoje se não fosse isso, que inclui minha família e uma babá que me ajuda.

“O esquema de home office facilita muito para poder me acompanhar e ficar mais perto dele. Não tem como dar conta de tudo, tento ajeitar meu horário e me dividir com meu marido para as terapias e médicos” Fernanda Muller Farias, 33 anos, coordenadora de marketing, Novo Hamburgo (RS).

Fonte: Universa/UOL

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