Pacote Anticrime e PL das armas podem elevar risco de feminicídios
Especialistas afirmam que combinação das propostas elevaria o potencial de assassinatos de mulheres e de impunidade
Prestes a ser votado no plenário da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) 3723/2019, que amplia as condições para porte e posse de armas, é alvo de críticas de diferentes especialistas, opositores e movimento feminista, que se articulam para tentar evitar a aprovação da proposta na próxima semana, quando ela deverá retornar à pauta da Casa.
Eles apontam o risco de aumento dos índices de violência contra a mulher, especialmente os casos de feminicídio, que passaram a ser tipificados por lei em 2015 e consistem nos assassinatos por discriminação de gênero. O Brasil é apontado como o 5º país do mundo em número de ocorrências. Dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2018, houve 1.206 feminicídios no país – aumento de 5% em relação a 2017.
A mesma pesquisa evidencia um aspecto já conhecido por quem acompanha o tema: em quase 90% dos casos, o autor do crime é o companheiro ou ex-companheiro da mulher assassinada. Além disso, o uso de armas de fogo tem destaque nos casos.
Dados do Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), do Senado, demonstram que o problema piorou entre 2006 e 2016, período em que houve alta no registro de feminicídios com arma de fogo em 17 das 27 unidades da Federação. Acre (+524,1%), Maranhão (+182,2%), Ceará (+165,2%), Rio Grande do Norte (+155,5%) e Roraima (+110,6%) foram os estados com maior aumento. Os dados foram compilados a pedido da Agência Patrícia Galvão, que divulgou a pesquisa.
Por esse motivo, a preocupação dos especialistas com o PL 3723 recai principalmente sobre a ampliação da posse de armas, que facilita a aquisição desses artefatos. Para a promotora de Justiça Silvia Chakian de Toledo Santos, do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), o tema se conecta diretamente com o chamado “Pacote Anticrime”, de autoria do ministro da Justiça, Sérgio Moro.
A medida traz, entre suas diferentes propostas, a ampliação das hipóteses previstas para o “excludente de ilicitude”, que isenta de punição determinadas condutas consideradas ilegais em casos de legítima defesa e outras situações. O texto redigido por Moro prevê que um magistrado poderá reduzir a pena até a metade ou mesmo deixar de aplicá-la “se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Apesar de ter sido vetado, no último dia 25, pelo grupo de trabalho que analisa o tema na Câmara, o trecho referente ao excludente deve ser reapresentado na votação de plenário e é defendido por parlamentares da bancada da bala e outros aliados do governo.
Por conta disso, especialistas e opositores passaram a fazer uma relação entre essa medida e o PL 3723. Para a promotora Silvia Santos, as duas propostas seriam uma perigosa combinação.
“Nós, que trabalhamos diariamente nesses casos e enfrentamos plenários do júri, sabemos que este tem a característica da performance, ou seja, do apelo às emoções, e os jurados são leigos. (20:52)(21:36) O receio é de que qualquer alteração [legal] dessa natureza possa ressuscitar argumentos que possam ser manejados por parte da defesa de criminosos ‘passionais’ quando se trata de violência contra a mulher”, argumenta.
A ex-perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura Deise Benedito, mestre em Direito e Criminologia pela Universidade de Brasília (UnB), considera que a análise das duas propostas precisa levar em conta também o perfil do Judiciário brasileiro e o contexto de avanço conservador que hoje marca o país.
“Tem que ver quem é que julga. Dentro de uma sociedade que é racista, machista, homofóbica e lesbofóbica, e dentro desta visão punitivista que a gente está vivendo na nossa sociedade, de recrudescimento de direitos, é claro que, dependendo da situação, eles [os juízes] vão dizer ‘o cara fez isso emocionado porque feriu a honra, feriu isso, feriu aquilo, ele estava no direito dele, que fez isso pra se defender’. Num júri, isso tem uma força, um apelo emocional muito grande”, analisa.
A promotora Silvia Santos acrescenta que uma eventual aprovação das duas medidas faria o país retroceder em conquistas já alcançadas pelas mulheres ao longo da história.
“O argumento da ‘violenta emoção’ nos remonta, invariavelmente, a um passado em que os criminosos passionais ficavam, de fato, impunes porque alegavam que matavam as esposas movidos por violenta emoção da traição, do flagrante de adultério, ou seja, o tempo da chamada legítima defesa da honra, em que a mulher sequer portava honra própria e seu comportamento sexual ou social refletia a honra do marido da família”, alerta.
Recorte racial
A leitura dos críticos aos projetos é de que as mudanças tenderiam a prejudicar ainda mais as mulheres negras. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que elas correspondem a cerca de 60% das vítimas dos feminicídios registrados no país.
“Sabemos que o recorte racial estrutura as violências todas e, mais uma vez, as mulheres negras são as que mais podem ficar na ponta do fuzil, sejam elas ou seus filhos”, afirma a deputada Talíria Petrone (Psol-RJ), uma das principais opositoras das medidas.
“A gente precisa ampliar a compreensão disso pra associar a uma série de violências institucionais que estão produzindo a mortalidade de mulheres negras em diversos campos – na saúde pública, do ponto de vista das agências penais e também no ambiente doméstico. E a gente sabe que a Lei Maria da Penha já não tem sido um instrumento tão eficaz pra proteger mulheres negras vítimas de violência doméstica como tem sido em relação às mulheres brancas”, pontua a coordenadora do Núcleo Especializado em Diversidade e Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Isadora Brandão.
PL das Armas
Do ponto de vista do conteúdo, o texto sobre liberação de armas que será debatido no plenário da Câmara na próxima semana é um substitutivo do deputado Alexandre Leite (DEM-SP) para o PL 3723/19.
Ele propõe, entre outras coisas, redução de 25 para 21 anos da idade mínima para aquisição de armas; porte dos artefatos para maiores de 25 que comprovem serem alvos de ameaça; não exigência de comprovação de capacidade técnica, laudo psicológico ou negativa de antecedentes criminais para a posse de armas de fogo. Também desobriga o comprador de ter que apresentar comprovante de ocupação lícita e ausência de inquérito criminal ou policial contra si.
Fonte: Brasil de Fato