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Pesquisadores brasileiros abandonam carreira: ‘Sofri muito assédio’

Aline Moura*, 33, concluiu o doutorado em biologia celular e molecular em abril deste ano. Após anos de dedicação exclusiva à pesquisa, entretanto, ela não pretende seguir a carreira acadêmica. “Foi bem difícil tomar essa decisão, afinal, eu sempre quis ser cientista. Mas é uma carreira que impacta demais a saúde mental e que demanda um pouco de abdicação da vida pessoal, porque tem sempre que estar pesquisando, escrevendo e fazendo experimentos”, conta.

Tainá Dias de Castro, 27, mestranda em letras, diz que desde a graduação desenvolveu crises de ansiedade devido à pressão para ser produtiva. “Já ouvi que eu devia produzir mais, já que sou paga para isso, como se a bolsa fosse um dinheiro que desse para eu me manter tranquilamente”, diz.

As pesquisadoras não estão sozinhas em suas queixas. Pelo contrário, elas compõem as estatísticas que mostram que a saúde mental dos cientistas está fragilizada, caracterizando o que um artigo da revista científica Nature nomeou como crise na ciência. De acordo com o texto, publicado no mês passado, pesquisadores de todo o mundo e em todos os estágios da carreira estão sofrendo bullying, discriminação, ansiedade e depressão.

Uma pesquisa de 2018 já havia mostrado que os níveis de ansiedade e depressão são seis vezes maiores entre os pesquisadores, se comparados com a população geral. Estudos brasileiros também confirmam a prevalência de um relevante sofrimento psíquico entre acadêmicos. Para a psiquiatra Luísa Bisol, professora adjunta da Faculdade de Medicina da UFC (Universidade Federal do Ceará), a forma mercantil como a ciência se estrutura acaba favorecendo o adoecimento psíquico.

“A distribuição das verbas de pesquisa é baseada em um ranking de quanto cada pesquisador publicou e o quanto esse trabalho é relevante, ou seja, quantas vezes ele foi citado por seus pares. O problema é que os espaços para publicação de trabalho científico não cresceram na mesma proporção que a quantidade de pessoas produzindo ciência. Atualmente, há uma dificuldade maior em publicar seus trabalhos”, explica Bisol.

A pandemia de covid-19, segundo o artigo da Nature, exacerbou ainda mais a situação, que é resultado direto de uma cultura tóxica, onde o assédio moral é uma constante. “Eu sofri muito assédio durante o mestrado e doutorado e isso acabou afetando a forma como eu me via, no valor que eu me dava. Precisei de muita terapia e também de tomar remédios para lidar com essas questões”, revela Ferreira.

A situação é ainda pior para pessoas e grupos sub-representados, incluindo mulheres, indivíduos não-binários, não brancas e estudantes de baixa renda, de acordo com a revista.

A doutoranda em história na UFV (Universidade Federal de Viçosa) Karina Aparecida de Lourdes Ferreira, 29, relata estar sofrendo devido às incertezas quanto ao seu futuro profissional. Ela também afirma que desenvolveu ansiedade social e que tem dificuldade de se sentir pertencente ao universo da academia.

“Vim de uma família humilde de agricultores e acho que nesse processo de sair para estudar enfrento dificuldades que vêm desse lugar social. Atualmente lido com uma pressão cruel de não saber o que vai ser quando a bolsa de pesquisa acabar. Além disso, não consegui desenvolver relacionamentos amigáveis na universidade, acho um ambiente hostil e competitivo”, pontua Karina.

A carga horária dos cursos e a distância das famílias, já que muitos estudantes se mudam para a cidade onde fica a faculdade, também são fatores que podem desencadear estresse aos estudantes e pesquisadores. Além disso, os dados das pesquisas sugerem que o mau equilíbrio entre vida pessoal e profissional também impacta a saúde mental.

Para Karina, a sensação é de incompletude, de sempre ter algo por fazer. “Não é como em um emprego que quando encerra o horário você vai para casa. No processo de escrita da dissertação ou da tese, ela nunca sai da sua cabeça e tem sempre a pressão por fazer algo mais”, alega.

Professores sobrecarregados

No grau mais alto da carreira acadêmica, os professores e pesquisadores sênior lidam com questões diferentes, mas igualmente desafiadoras. A sobrecarga de trabalho é comum nesse público, que fica encarregado não só da docência, como também por desenvolver projetos de pesquisa, extensão e inovação tecnológica.

Segundo a psicóloga Luciane Brun, que é doutora em psicologia clínica, profissionais da rede privada também ficam, muitas vezes, responsáveis por questões administrativas da faculdade, como a retenção de alunos. Na pesquisa para sua tese, em 2018, ela encontrou alta prevalência de sofrimento psíquico entre professores universitários da rede particular do Rio Grande do Sul. Cerca de 55% desses profissionais apresentavam transtornos mentais comuns, como transtorno do sono, dores crônicas, enxaqueca e transtornos digestivos; e 35% deles tinham depressão.

“Quanto mais persistentes os sintomas dos transtornos mentais comuns, maior é a probabilidade de um adoecimento mental ou físico”, esclarece Brun.

Para mudar essa realidade, as especialistas ouvidas pelo VivaBem postulam que é preciso haver uma mudança institucional, que ofereça uma alternativa ao modelo produtivista da ciência.

Para Ionésia Amaral, que é médica psiquiatra voluntária do Caepes (Centro de Atenção e pesquisa do estresse da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará), a promoção da saúde mental precisa ser valorizada pelas instituições, com a existência de um grupo pedagógico para falar sobre estresse e autocuidado aos alunos.

Brun enfatiza ainda que a própria qualidade das pesquisas e da ciência como um todo ficam comprometidas, se a saúde mental dessa parcela da população não for levada em conta. “As pessoas que se interessam pela carreira acadêmica têm interesse genuíno em contribuir com o avanço da ciência, mas para isso elas precisam estar bem”, pondera.

Estratégias

Para melhor lidar com as pressões e desafios do ambiente acadêmico, as especialistas sugerem:

  • Tenha hobbies e faça atividades lúdicas
  • Pratique atividade física
  • Busque pelos espaços de convivência das universidades
  • Crie laços com pessoas com quem você possa rir e conversar sobre assuntos que não sejam somente os da faculdade
  • Não se isole e busque ajude profissional caso perceba que sozinho não está conseguindo se organizar ou não encontre uma saída

*Nome alterado para preservar identidade da entrevistada

Fonte: VivaBem UOL

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