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14 mil pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos durante governo Bolsonaro

Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), 14.549 pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos no Brasil. Levantamento inédito feito pela Agência Pública e Repórter Brasil, com dados de 2019 a março de 2022 do sistema de notificações do Ministério da Saúde, mostra que essas intoxicações levaram a 439 mortes — o que equivale a um óbito a cada três dias.

Nesse período, o Brasil bateu o recorde de aprovações de pesticidas, com mais de 1.800 novos registros, metade deles já proibidos na Europa. O governo de Bolsonaro também foi marcado pelo avanço na tramitação do Projeto de Lei 1459/2022, apelidado de “Pacote do Veneno”, que pode facilitar ainda mais a aprovação dessas substâncias.

Segundo o levantamento, homens negros são as principais vítimas de agrotóxicos. As circunstâncias que mais levaram às intoxicações foram tentativas de suicídio, com cerca de 5.000 casos, seguidas por acidentes, uso habitual dos pesticidas e contaminações ambientais, por exemplo, quando o químico é dispersado pelo ar.

As intoxicações aconteceram principalmente nas lavouras de soja, fumo e milho.

Os dados também mostram que os estados da região Sul concentraram a maioria das notificações, considerando o número de habitantes. Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul registraram 4.200 intoxicações. Nove entre os dez municípios com mais casos em relação à população estão na região.

Acesse o mapa das intoxicações e confira quantos casos e mortes foram registrados no seu município.

Estados do Sul concentram mais intoxicações por número de habitantes

Os municípios com mais intoxicações notificadas considerando o tamanho da população estão na região Sul.

Em Santa Catarina, o município de Rio do Campo registrou 61 casos para uma população de apenas 5.800 habitantes. Já os gaúchos Dom Feliciano e Alpestre registraram 153 e 41 casos, respectivamente, com população de 15,5 mil e 5.800 pessoas.

No oeste do Paraná, Braganey, com 5.300 moradores, registrou 28 intoxicações. Já em Coronel Domingos Soares foram 41 casos numa população de 7.500 pessoas.

Na análise do engenheiro-agrônomo e integrante da ABA (Associação Brasileira de Agroecologia) e da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, Leonardo Melgarejo, os números altos da região podem indicar que os agricultores estão mais próximos de serviços de saúde que em outros estados.

“Acredito que o dado não seja porque aqui no Sul os agricultores sejam mais descuidados, mas, sim, ao fato de que profissionais da saúde têm mais zelo com relação aos casos de intoxicações”, diz.

Já em números absolutos, o município que mais registrou intoxicações por agrotóxicos foi Recife, com 938 notificações no período.

A pesquisadora da Fiocruz Pernambuco e vice-coordenadora do GT (Grupo de Trabalho) de Agrotóxicos da instituição, Aline Gurgel, reforça que o número maior de registros de casos em um território não significa necessariamente uma maior ocorrência de casos.

Para Gurgel há várias hipóteses que podem justificar os registros na capital pernambucana, como a formação dos profissionais de saúde e dos agricultores da região.

Ela também cita a criação do programa de VSPEA (Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos), que instituiu ações como o cadastro na atenção primária dos aplicadores de agrotóxicos e a vigilância participativa dos trabalhadores expostos a agrotóxicos.

Homens negros: o perfil da vítima dos agrotóxicos

Além das diferenças regionais, os dados obtidos pela Agência Pública e Repórter Brasil revelam que homens negros foram o perfil mais comum entre os intoxicados.

Para o médico e professor aposentado que coordenou o Observatório do Uso de Agrotóxicos e Consequências para a Saúde Humana e Ambiental da UFPR (Universidade Federal do Paraná), Guilherme Cavalcanti de Albuquerque, a intoxicação recorde desse recorte da população pode estar relacionada ao racismo estrutural, que faz com que homens negros executem trabalhos mais precarizados, como o de aplicador de agrotóxicos.

“A população negra é uma população a quem foi negado por séculos o acesso à educação e, mesmo quando há educação qualificada, o racismo estrutural impõe maior dificuldade para acesso a trabalhos menos agressivos. Resta mais aos negros esse tipo de trabalho prejudicial à saúde”, afirma.

Na mesma linha, Gurgel lembra que a baixa escolaridade dificulta a compreensão das instruções e dos riscos e perigos associados à exposição aos agrotóxicos.

“Mais grave ainda é que as recentes modificações nas normativas brasileiras vulnerabiliza ainda mais a população, porque retiraram informações de alerta dos rótulos e bulas de agrotóxicos, assim como o pictograma da caveira com duas tíbias cruzadas, de vários agrotóxicos comercializados no Brasil. Para trabalhadores com baixa escolaridade, essa mudança na comunicação de risco pode levar a um maior número de casos de intoxicação, pois dificulta a identificação do perigo”, comenta a pesquisadora, se referindo às mudanças no critério de classificação e nas embalagens de agrotóxicos feita pela Anvisa em 2019.

Lavouras de soja, fumo e milho são campeãs em intoxicações

Os casos de intoxicação registrados entre 2019 e 2022 aconteceram principalmente em lavouras de soja, fumo e milho. A soja correspondeu a 802 registros e o milho, 523. Os números altos nesse tipo de lavoura, de acordo com os pesquisadores, podem estar relacionados às áreas que ocupam e à forma de pulverização, normalmente feita por aviões.

A pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo) Larissa Bombardi indicou que as plantações de soja, milho, cana-de-açúcar e algodão são o destino de 79% das vendas de agrotóxicos no Brasil. O Atlas Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia, publicado em 2017, mostra que 52% do veneno vai para plantações de soja e 10% para o milho.

Já as plantações de fumo registraram 734 intoxicações nos dados do Ministério da Saúde.

O professor Albuquerque aponta que, apesar de não estar entre as principais lavouras em extensão no país, o cultivo de fumo é um dos que mais usa agrotóxicos.

“Além disso, o cultivo exige contato muito próximo do trabalhador com o fumo contaminado pelo agrotóxico. Isso faz com que a incidência de intoxicação nesse plantio seja proporcionalmente maior”, comenta, lembrando que a aplicação de agrotóxicos nas lavouras de fumo muitas vezes é feita via costal.

Mais de cinco mil intoxicações foram tentativas de suicídio

Os casos de tentativa de suicídio são a circunstância mais comum das intoxicações, com 5.210 registros. Segundo os pesquisadores, dois fatores ajudam a interpretar o dado.

O primeiro é a baixa notificação de outras causas de intoxicação, que faz com que as casadas por tentativas de suicídio tenham destaque. O segundo é que o uso de alguns agrotóxicos pode levar à depressão e a alterações do sistema nervoso, o que levaria às tentativas.

“Como há muita subnotificação, os casos de suicídio e de óbitos em geral são mais difíceis de ocultar”, avalia Albuquerque. “Mas há grande vínculo entre a intoxicação por agrotóxicos e o suicídio, porque há agrotóxicos que induzem fortemente a doenças depressivas e ao suicídio”, complementa.

Aline Gurgel comenta que os agrotóxicos do grupo químico dos carbamatos e organofosforados têm como um de seus principais mecanismos de ação a depressão do sistema nervoso.

O fungicida propamocarbe é um exemplo do grupo dos carbamatos e é usado em mais de 40 culturas no Brasil, incluindo na abobrinha, alface e tomate. Os organofosforados compreendem uma ampla gama de agrotóxicos, entre eles o fungicida acefato, o quinto agrotóxico mais vendido no Brasil, com 27,5 mil toneladas comercializadas em 2020.

“Nesses casos, alguns agrotóxicos que afetam o sistema nervoso central funcionam como uma espécie de gatilho para os outros que funcionam como uma espécie de bala”, sintetiza Melgarejo.

Pandemia reduziu registros de intoxicações

A quantidade de casos de intoxicações por agrotóxicos caiu durante os anos de pandemia do coronavírus: em 2019 foram 5.875 casos para 4.073 em 2020, e 3.816 em 2021.

Segundo Leonardo Melgarejo, a queda era esperada e pode não significar uma diminuição real de intoxicações.

“Durante a pandemia, as pessoas evitaram aglomerações, especialmente em locais de risco. Somou-se isso às dificuldades tradicionais de registro de casos de agrotóxicos que implicam em uma subnotificação”, afirma, mencionando dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) de que apenas uma a cada 50 intoxicações por agrotóxicos é registrada.

A pesquisadora da Fiocruz concorda com os impactos da pandemia nas notificações.

“Os serviços de saúde foram sobrecarregados em decorrência da pandemia, a identificação de casos suspeitos de intoxicação, bem como a notificação de agravos como intoxicações exógenas, muito provavelmente foram prejudicadas”, pontua Gurgel. Ela também reforça que as intoxicações por agrotóxicos são subnotificadas por diferentes motivos além da Covid, como a falta de treinamento dos profissionais e a baixa cobertura laboratorial para confirmação de casos.

Além disso, há dificuldade dos intoxicados chegarem aos postos de atendimento pela distância dos serviços de saúde e a dificuldade de locomoção.

“Os agricultores nem sempre procuram atendimento e quando procuram é porque houve uma intoxicação aguda e sentiram medo de morrer. Então as outras intoxicações, de impacto mais baixo, mas que acontecem de forma crônica, sequer são registradas”, comenta Melgarejo.

Fonte: Da Agência Pública e Repórter Brasil/no UOL

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