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Após reportagem da Folha, STF anula condenação de trabalhador rural preso sem provas há sete anos

Caso se baseava em delação de réu confesso de latrocínio que havia se retratado e relatou agressões

O ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), anulou nesta quinta-feira (1º) a condenação do trabalhador rural José Aparecido Alves Filho, preso há sete anos sem provas, e mandou libertá-lo.

A decisão do ministro se deu após a publicação pela Folha da história de José Aparecido na série de reportagens Inocentes Presos. O trabalhador rural foi condenado a 21 anos por latrocínio apesar de o único indício contra ele ser uma delação desmentida depois.

Na decisão de Fachin, ele determinou também que seja feito um novo interrogatório de Evandro Matias Cruz, réu confesso do crime que voltou atrás nas afirmações feitas em delegacia em 2014 e disse que José Aparecido é inocente.

“Não é justo alguém estar pagando por algo que não cometeu. Não tem por que a pessoa estar ali presa sem ter cometido o crime. Quem tem que pagar somos nós que cometemos. Ele está pagando por um crime pelo qual ele não cometeu”, disse Evandro à Justiça. Ele também relatou ter apanhado para incriminar José Aparecido.

“Então, senhor, aconteceu o seguinte… Devido ao espancamento, a forma como eles me bateram, tomando choque… Eles me forçaram, mostrando fotos… Forçaram a falar que era o José Aparecido, mas o José Aparecido não teve envolvimento”, disse na primeira oportunidade em que se retratou em juízo, ainda em janeiro de 2015.

Condenado em primeira e segunda instâncias, o trabalhador rural está detido na Penitenciária de Iperó, no interior paulista. Com a decisão, ele deve ser solto nesta sexta-feira (2).

A família planeja um churrasco para recebê-lo. “Estamos pulando aqui na roça”, disse a mulher de José Aparecido, Vanessa Veiga Lopes, moradora de Tuiuti, no interior paulista.

Segundo ela, os dois filhos, de 10 e 12 anos, que tinham apenas três e cinco anos quando o pai foi preso, estão eufóricos. “A minha mãe, que tem meu marido como filho, e minha sogra, por ser de idade, estão meio anestesiadas, parece que não caiu a ficha”.

Já o advogado da família, Nagashi Furukawa, exaltou o papel da reportagem na libertação de José Aparecido.

“É resultado de um longo tempo de trabalho, sete anos. A alegria é indescritível. É preciso dizer sobre a importância da imprensa livre. Foi a matéria do jornal que certamente fez com que o ministro debruçasse sobre os autos e visse o que estava acontecendo”, disse.

Entenda o caso

O crime pelo qual José Aparecido foi condenado ocorreu na noite de 24 de março de 2014, em uma área rural de Bragança Paulista (SP), a 85 km da capital, e teve como vítima o patrão dele, o sitiante José Henrique Vettori, então com 68 anos de idade.

Vettori foi rendido por homens armados quando parou a picape na entrada de seu sítio no município de Tuiuti, vizinho a Bragança. Mesmo sem oferecer resistência, ele foi agredido e morto por um dos ladrões enquanto era levado para outro local.

Os criminosos colocaram o corpo na caçamba da picape, atearam fogo nela e fugiram. O homem apontado como autor do disparo foi Edilson Paulo de Souza, tio de Evandro. Um terceiro criminoso, apelidado de Peixe, ajudou a iniciar o incêndio.

Toda a dinâmica montada pela polícia se baseia em depoimento de Evandro, dado na delegacia cerca de dois meses depois do crime, quando ele foi localizado em uma cidade no interior de Minas, Santana do Manhuaçu, escondido na casa da avó.

Os policiais chegaram até o mecânico após investigarem um Fiat Palio abandonado e batido em uma estrada vicinal por Evandro durante a fuga. Neófito na criminalidade, ele se desesperou ao cruzar com duas viaturas da PM que estavam em sentido contrário e nem perceberam o acidente.

A confissão de Evandro foi registrada em vídeo. A análise das imagens e do documento produzido a partir dele revela como a polícia construiu a tese de que José Aparecido era o terceiro elemento do crime.

Nos 37 minutos e 48 segundos de gravação, em nenhum momento os policiais pedem para que o mecânico descreva as características físicas desse terceiro elemento, o Peixe. Também não questionam se o comparsa era branco, negro, alto, baixo, gordo ou magro, novo ou velho, procedimento que deve iniciar qualquer processo de reconhecimento.

Em vez disso, quase no final do depoimento, os policiais apresentam a Evandro meia dúzia de fotos. Quando viu uma foto de José Aparecido, Evandro ficou por alguns segundos pensativo.

“Eu não tenho a absoluta certeza. Mas…”, começou ele, sendo interrompido por um policial que participava da reunião, que o questionou sobre o motivo da incerteza. “O boné. Está sem boné. E parece que o cabelo está maior”, afirmou ele.

Os policiais propuseram buscar uma foto mais recente de José Aparecido porque, conforme consta no processo, eles usavam uma foto em preto e branco quando o trabalhador rural tinha 17 anos, tirada mais de 18 anos antes.

O delegado do caso afirmou que um reconhecimento presencial foi feito na mesma noite do interrogatório, quando Evandro confirmou a participação de José Aparecido. No entanto, um dos policiais que serviu de testemunha no procedimento alegou posteriormente que não participou do ato.

O delator, por sua vez, nega que tenha reconhecido José. “Só tinha o Zé, só o Zé estava lá. Disse que não reconhecia o Zé, tomei mais dois tapas”, relatou Evandro em audiência realizada no fórum de Bragança Paulista em 2015.

Após o interrogatório, Evandro deu três depoimentos negando que José Aparecido tivesse participado do crime. No entanto, o primeiro depoimento e um bilhete citando que corroborava com as primeiras informações serviram para que o trabalhador rural fosse condenado em duas instâncias.

Após as condenações, Evandro disse que o bilhete não anulava os depoimentos em que inocentava José Aparecido e reafirmou a informação.

A Folha conversou com José Aparecido na prisão, em Iperó. Lá, ele relatou sentir falta do trabalho e dos filhos.

“Eu sinto saudades de trabalhar no que eu fazia, né? Lá fora, junto com a minha família, meus filhos”, disse. “Foram sete anos assim que eu não vi o crescimento dos filhos. Meus filhos que tão lá precisando do pai que tá aqui na cadeia.”

Na ocasião, relatou sentir vontade de comer um bolo de milho, feito pela mulher na noite em que foi preso. Em saída temporária recentemente, visitou a família e comeu três bolos. Agora, esposa dele já prepara os ingredientes para muitos outros.

Fonte: Folha de São Paulo

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