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Coletivo de Filhes de pessoas presas aposta no protagonismo jovem

“Não sei se foi em 2004 ou 2006, mas eu me lembro vividamente do dia em que minha mãe foi presa porque a gente estava na casa de alguém e eu estava sentindo que alguma coisa ruim iria acontecer”, relembra Cátia Kim de 28 anos. “Mais tarde, minha tia foi me buscar. Na época, minha tia era estudante e, durante o tempo em que minha mãe esteve presa, foi com essa tia que eu e meu irmão ficamos.”

A prisão da mãe e seu retorno fazem parte de Kim de uma forma incontornável. Acompanhar o desemprego e a depressão em que sua mãe entrou, quando voltou para casa, compõe apenas parte — psicológica e financeira — do trauma que a cadeia deixou em suas vidas.

Anos depois, já na faculdade de direito, Kim conseguiu um estágio no Ministério Público Federal em que cuidava de processos da ditadura militar. “Fui conhecendo mais movimentos contra tortura e, consequentemente, mais movimentos que falavam sobre as torturas que acontecem dentro do espaço prisional”, diz.

Quando Kim começou a trabalhar no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), o contato com familiares de pessoas presas passou a fazer parte da sua rotina. O ITTC promove atendimento a mulheres em conflito com a lei, sejam mulheres que estão presas ou egressas. O instituto tem uma rede com uma série de organizações políticas e movimentos sociais que discutem justiça criminal e seletividade penal, como a Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Presas e Sobreviventes do Cárcere (AMPARAR), da qual Kim é membro hoje.

Mulheres sobreviventes do cárcere

Em 2019, houve o primeiro encontro das Américas de mulheres sobreviventes do cárcere. Nele, Kim foi escolhida para ser a representante do ITTC e acompanhar duas sobreviventes do cárcere e Railda Alves, fundadora da AMPARAR. Kim e Railda se aproximaram e a advogada compartilhou sua história e como a prisão atravessava sua própria vida.

“A prisão historicamente foi construída com um objetivo: controlar determinados corpos”, afirma Kim. “Apesar do direito penal dizer que a pena vai só para aquele indivíduo, a pena atinge toda a família daquela pessoa, toda a comunidade da pessoa e toda a sociedade. Isso afeta não somente a saúde das pessoas, física e psicológica, mas também desperta uma questão inquietante: que adultos vamos ser? Que adultos a sociedade está criando quando diz que a prisão, onde há tortura, é a maneira de resolver os problemas sociais?”

AMPARAR

Desde o encontro em 2019, a relação de Kim com a AMPARAR se tornou mais forte. As fundadoras sempre incentivaram-na a criar um movimento político a partir dessa experiência. Em 2021, a AMPARAR começou a acompanhar muitas histórias de filhos de pessoas encarceradas que passaram a entrar em um contexto de maior vulnerabilidade física, financeira e psicológica.

“Eram muitas histórias, desses jovens passando por um momento delicado na pandemia”, conta. “A Railda disse que seria muito interessante ter um grupo em que nós, filhos, filhas e filhes de pessoas encarceradas ou que passaram pelo sistema prisional, pudéssemos falar só entre a gente.”

A iniciativa já acontece em outros lugares do mundo, como na Associação de Familiares de Detentos (ACIFaD) na Argentina e a Plataforma de Filhos e Filhas com Responsáveis Adultos Privados de Liberdade (NNAPEs) que é uma aliança da América Latina e Caribenha, o que serviu de referência para a criação do Coletivo de Filhes da AMPARAR.

Há uma ressalva importante: estes coletivos têm uma visão de transformação social através do atendimento, assessoria e acompanhamento, o que não segue o mesmo método que a AMPARAR desenvolve hoje. “A gente quer que nossos adolescentes sejam as pessoas conversando com a sociedade, que eles contem suas próprias histórias e, em certa medida, tornem-se multiplicadores”, diz.

Hoje, o Coletivo de Filhes da AMPARAR se reúne com Kim duas vezes no mês, sendo a primeira para promover o acesso à cidade e a segunda focada em rodas de conversa internas.

“A gente chegou a ir ao cinema, ao boliche; sempre em busca de conhecer outros lugares da cidade. Por um outro lado, as rodas de conversa sobre nossas experiências, com suas ausências e presenças, são mais complexas e difíceis, até para mim porque, apesar de ser a adulta do Coletivo, estou aprendendo junto o tempo inteiro.”

“Filhas e filhes também são sobreviventes”

Para Pedro*, de 16 anos, tem sido importante ingressar e se desenvolver em um grupo em que ele e sua irmã não são recebidos com olhares de julgamento. Tanto as discussões sobre sistema prisional quanto os depoimentos de colegas foram passos fundamentais para ele.

“Meu pai está preso há muitos anos — a primeira vez em que ele foi preso eu tinha entre 5 e 7 anos de idade — e eu nunca me abri muito sobre isso, mas as pessoas eventualmente descobrem e eu sempre tento levar na piada, por mais difícil que seja.”, diz Pedro.

A AMPARAR também oferece apoio financeiro às famílias dos participantes. Segundo Kim, é fundamental entender que parte da vulnerabilidade dessas famílias é financeira, causada pela ausência do provedor da família, as rotinas de jumbo — quando familiar tem que levar alimentação, roupas e itens de higiene básica para a pessoa presa — ou pelo desemprego generalizado que acomete pessoas que têm passagem pelo sistema prisional.

“Quando a gente estava amadurecendo a ideia de criar o Coletivo de Filhes, surgiu um edital para egressos”, conta Kim. “A gente se inscreveu e tentou trazer uma nova perspectiva sobre essa categoria, em que filhos, filhas e filhes também são sobreviventes do cárcere: a gente está lidando com os reflexos físicos, emocionais, financeiros e psicológicos desse encarceramento.”

Fonte: Ecoa/UOL

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