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Com aval do STF e do STJ, desembargador leva doméstica escravizada de volta

Com aval do ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jorge Luiz de Borba, acusado de manter Sônia Maria de Jesus em situação de escravidão doméstica por quase 40 anos, levou a trabalhadora de volta para a casa dele. Negra e surda, ela estava em um abrigo desde que havia sido resgatada por um grupo especial de fiscalização do poder público federal em junho.

Mendonça negou um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União (DPU) contra a decisão do ministro do Superior Tribunal de Justiça Mauro Campbell. Ambos autorizaram o desembargador e sua esposa, Ana Gayotto de Borba, a visitarem Sônia no abrigo e a levarem de volta para a residência deles, em Florianópolis (SC), caso ela demonstrasse “vontade clara e inequívoca”.

Diante da operação de resgate, o casal negou todas as acusações, disse que Sônia foi criada como uma filha e entrou com um ação para ser restituída ao seu convívio familiar. O argumento usado pelas autoridades para mantê-la longe da família é de que o casal é investigado exatamente por escravizá-la.

Enquanto isso, a família biológica da vítima a procurou por um longo tempo, sendo que sua mãe morreu vendo frustrada a esperança de um dia reencontrá-la. Os irmãos expressaram desejo de voltar ao convívio com ela.

O encontro entre os Borba e Sônia aconteceu, na última quarta (6), com a presença de advogados. Ela foi convencida a voltar.

“Ontem, Soninha foi para casa. Ministro Campbell do STJ autorizou a uma visita do casal no abrigo (três meses ela está lá) e se ela demonstrasse vontade, poderia retornar para casa”, afirma mensagens que circulam entre amigos de Borba, no WhatsApp, junto com uma foto de ambos.

“Ela correu para os braços deles, temos tudo filmado pois ministro exigiu que filmassem o encontro para remeter para ele o vídeo. Como ela não fala, a expressão de vontade dela é a ação/reação. Foi maravilhoso. Não lhe mando o vídeo porque ainda é sigiloso. Mas ela em casa não é segredo rsrsrs”, diz a mensagem.

Diante da repercussão do caso, André Mendonça determinou, nesta sexta (8), que as imagens do encontro fossem anexadas ao habeas corpus.

Em sua decisão, o ministro Mauro Campbell afirmou que “a suposta vítima do delito viveu como se fosse membro da família”. E que apesar de o vínculo familiar entre eles “não tenha ainda sido formalizado”, a mudança deverá ser “oportunamente solucionada no bojo da ação cível de reconhecimento de paternidade socioafetiva”. Afirmou que compete a ela e não ao Estado decidir com quem vá morar.

O caso corre em segredo de Justiça. Mas a decisão sobre o habeas corpus de Mendonça, não. E ele pode ser acessado aqui. Segundo o defensor público William Charley, uma vez que o HC foi concedido sem análise do mérito, o que deve ser julgado pela segunda turma do STF, a Defensoria Pública da União vai recorrer.

A coluna conversou com três auditores fiscais do trabalho que participaram, nos últimos quatro anos, de resgates de empregadas domésticas submetidas a condições análogas às de escravo. Afirmaram que é comum que elas mantenham forte relação afetiva com os patrões, pois a casa deles era a única realidade com a qual tiveram contato por décadas. “Uma síndrome de Estocolmo com o sequestrador”, resumiu um deles.

A “vontade clara e inequívoca”, com a reflexão sobre tudo o que aconteceu, nesses casos, começa a ficar mais clara, segundo eles, muito tempo após o resgate – o que ainda não teria acontecido com Sônia. E, no caso dela, há agravantes de um isolamento maior.

Sônia apareceu em lista de funcionárias do desembargador

Sônia tem deficiência auditiva, mas nunca havia sido ensinada a ela a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com isso, ela se comunicava principalmente por gestos com a família.

Segundo a fiscalização, ela fazia refeições com as demais empregadas. A vítima realizava tarefas domésticas necessárias à rotina da residência, como arrumar camas, passar roupas e lavar louças sem o devido registro em carteira, sem receber salário, sem jornada de trabalho, férias e descansos semanais definidos. Não tinha acesso a atendimento de saúde, tendo perdido dentes.

Sônia teria sido levada aos nove anos, em Osasco (SP), para residir em Santa Catarina. Começou a trabalhar na casa do desembargador aos 13 anos, permanecendo até ser encontrada pela equipe, aos 50.

Em junho, o grupo especial de fiscalização móvel composto por Inspeção do Trabalho, MPT (Ministério Público do Trabalho), MPF (Ministério Público Federal), DPU (Defensoria Pública da União) e Polícia Federal encontrou a trabalhadora na casa do desembargador.

Jorge Luiz de Borba tem afirmado que ela é sua filha afetiva, prometendo adotá-la. Contudo, uma postagem no Instagram de sua esposa mostra Sônia relacionada em uma lista de “funcionárias” do casal, conforme esta coluna revelou ainda em junho.

Uma publicação de 8 de agosto de 2020, véspera do Dia dos Pais, traz o desembargador do TJ-SC segurando um cartão com agradecimentos feitos a ele. Assinam: “De suas funcionárias: Soninha, Nadir, Elisangela, Lucimara”. Sônia é a trabalhadora resgatada.

Nos comentários da postagem, o próprio Borba afirma que é “muito gratificante quando tuas funcionárias te homenageiam, agradecendo”. O acesso à conta foi fechado a não seguidores após o caso vir à tona.

Questionada sobre as postagens, a família Borba afirmou ao UOL, através de sua assessoria, que não comentará a foto. “Em respeito às decisões da Justiça, não haverá manifestação enquanto perdurar o sigilo”, disse.Continua após a publicidade

Após a repercussão do caso, o desembargador, sua esposa e os quatro filhos do casal assinaram uma nota à imprensa anunciando que vão ingressar na Justiça com pedido de filiação afetiva, garantindo direitos de herança. Também afirmaram que jamais tolerariam trabalho escravo, “ainda mais contra quem sempre trataram como membro da família”, e que estão colaborando com as autoridades.

Mas Sônia não aparece entre as pessoas que Ana Gayotto de Borba postou, em um 23 de setembro, para celebrar o Dia dos Filhos. Também não aparece em outra imagem, de 2019, em que comemora a “família toda reunida”. Também não está nas fotos das viagens internacionais da família para a Itália e Portugal.

Em outra imagem, de uma celebração, Sônia aparece entre as pessoas que Ana Cristina descreve como “ajudantes de ‘ferro’, fiéis companheiras”.

No dia 13 de junho, os deputados estaduais Ivan Naatz (PL), Fabiano da Luz (PT), Antídio Lunelli (MDB) e Maurício Eskudlark (PL) apresentaram um voto de solidariedade ao desembargador na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. “Sou testemunha de que aquela senhora era tratada como filha, como uma irmã, tratada como membro da família e não como empregada”, declarou Naatz.

O coordenador da operação, Humberto Camasmie, foi afastado do caso sob a alegação de que violou o segredo de Justiça ao conceder uma entrevista a um programa de TV. Mas o caso já era público quando ele deu falou sobre o tema.

Trabalho escravo contemporâneo no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 61,7 mil trabalhadores resgatados, desde 1995, estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades. Em 2021 e 2022, 30 pessoas foram resgatadas por ano do trabalho escravo doméstico.

A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

Fonte: Coluna do Leonardo Sakamoto no UOL

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