Damares Alves tenta impor doutrina em campanha por abstinência sexual
Para pastor, medida não é eficaz nem mesmo entre evangélicos
Lançada essa semana pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, a campanha “Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois” tem o estímulo à abstinência sexual como principal política de prevenção da gravidez precoce. A iniciativa, no entanto, é vista como problemática por especialistas em saúde, por mulheres e até por evangélicos.
Ao custo de R$ 3,5 milhões, a campanha terá como foco adolescentes de duas faixas etárias, de 15 a 19 anos e abaixo de 15 anos. A iniciativa também não menciona o uso de camisinha ou de qualquer método contraceptivo. A ideia é promover o que a ministra chamou de “reflexão”.
Pastor da Igreja de Deus desde 1994, Alexandre Gonçalves rechaça completamente o modelo de campanha adotado que, segundo ele, tenta impor uma doutrina à população. “Ela lança mão de uma doutrina, que é para ser restrito a quem, voluntariamente, quer seguir os ensinamentos cristãos, e lança isso para o conjunto inteiro da população. Isso é, do ponto de vista teológico, uma tremenda heresia, e do ponto de vista social e político, um abuso”, afirma.
Gonçalves considera que o projeto erra “por um ponto de vista muito simples” e ressalta que a abstinência sexual tem pouca adesão mesmo entre convertidos e frequentadores da igreja.”Ela esquece que nem na igreja essa ideia funciona”.
” Sou pastor há 25 anos, tenho a experiência clara de que 90% dos casais de namorados e noivos acabam tendo relação sexual antes do casamento. E a Damares sabe disso, é uma realidade. Se na igreja evangélica, que são pessoas que foram voluntariamente, sabendo desse ensinamento, e essas pessoas não conseguem cumprir, quanto mais se isso for para a população em geral, que não tem qualquer obrigação de acreditar na fé cristã”, acrescenta.
Como enfrentar
A gravidez precoce é, de fato, um problema a ser enfrentado no Brasil. De acordo com um estudo da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2018, a taxa mundial de gravidez na adolescência é estimada em 46 nascimentos para cada mil meninas entre 15 e 19 anos. No Brasil, a previsão sobe para 68,4, maior do que a taxa geral da América Latina e do Caribe, que é de 65,5 nascimentos.
A estudante de medicina Mariana Cruvinel é parte dessas estatísticas. Mãe aos 16 anos, ela garante que a abstinência sexual como política pública é um equívoco e não vai resolver o problema.
“Minha opinião sobre o assunto é que essa iniciativa não funciona. Primeiramente, porque somos uma especie animal e o sexo faz parte do nosso instinto. Segundo, é impossível você ter controle sobre a atividade sexual de alguém de maneira democrática. A questão é ensinar o sexo como algo normal, mas que tem suas consequências. A solução nunca vai ser influenciar a abstinência, e sim orientar sobre a hora certa e a maneira certa (de um jeito eficaz e sem tabus) de praticar a atividade sexual. É ir tentando mudar o dogma de que sexo é um assunto velado, e começar a tratar com mais naturalidade”, argumenta.
Em entrevista recente ao Brasil de Fato, Elaine Reis Brandão, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que a medida do governo é ineficaz e que o caminho correto passa por ações de educação sexual. “A gente precisa proporcionar espaços de diálogo para que os jovens possam expressar suas dúvidas e inseguranças e a gente possa discutir sem preconceitos, sem discriminações as questões inerentes à sexualidade e ao gênero”, ressalta.
Quem também se posicionou contrário à campanha federal foi a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que divulgou um documento científico, no final de janeiro, com considerações sobre a proposta. No texto, a entidade enfatiza que o amplo acesso à educação e à informação, associado à disponibilidade de serviços de saúde qualificados, representam a única ferramenta comprovadamente eficaz para lidar com a questão. Para a SBP, a ausência do uso de métodos contraceptivos, a dificuldade de acesso a programas de planejamento familiar e sobretudo a falta de informação adequada e sistematizada para os jovens têm contribuído para o aumento da gravidez precoce.
Dominação evangélica
Para o pastor Alexandre Gonçalves, o que está realmente por trás da iniciativa da ministra Damares Alves é “a ideia de que a cultura cristã tem que ser imposta”, prática conhecida como teologia do domínio. Difundida com força por setores evangélicos desde os anos 1980, esse ramo da teologia cristã busca exatamente fazer com que cristãos ocupem espaços de poder para desenvolver a agenda pública pautada por questões religiosas.
“A teologia do domínio acredita que o evangelho tem que dominar na sociedade e para isso a igreja tem que levantar líderes em todas as áreas do mundo, na economia, na política, nas artes em geral, para que a cultura judaico-cristã possa ser implantada na sociedade, e com isso as leis civis e morais possam vigorar para todo o conjunto da sociedade”, afirma.
Gonçalves diz que é um erro classificar a ministra Damares como uma pessoa “tosca” ou “irracional”. “Ela cumpre um papel. O papel dela é justamente ser aquela voz do teonomismo e da teologia do domínio dos evangélicos, que é o que atrai muito voto no Bolsonaro. Isso foi um pedido de muitos deputados da bancada evangélica e também uma estratégia bem clara de colocar alguém que tivesse boa entrada entre os políticos e que pudesse assim representar os anseios dos evangélicos de ter no governo uma representante desses interesses que, de alguma forma, vão ao encontro da ideia de que a cultura cristã tem que ser imposta, embora eles não usem essa palavra, mas acaba sendo”, conclui.
Fonte: Brasil de Fato