Estar ocupado o tempo todo não é virtude: o perigo da produtividade tóxica

Sabe aquela pessoa que parece estar reclamando da vida quando diz que está superocupada, mas na verdade está fazendo um autoelogio porque acha o máximo ser indisponível? Ou ainda aquela pessoa que julga o colega de trabalho que sai pontualmente (ou que sai mais cedo para buscar um filho na escola)?
Sabe aquele dia em que você, por mais que tenha produzido o dia todo, ainda acha que não fez o suficiente ou fez menos do que deveria?
Todos estes podem ser considerados sintomas de uma cultura de produtividade tóxica. Vivemos todos imersos nela hoje em dia. Por isso, é preciso desacelerar, dedicar atenção, consciência e algum esforço para fazer boas perguntas no cotidiano e não contribuir para que ela se reproduza.
Se ficarmos no automático, a tendência é acharmos o máximo a pessoa superocupada, pensarmos que indisponibilidade é sinônimo de status e concordarmos com aquele julgamento de que a pessoa que sai pontualmente ou que precisa de flexibilidade de tempo no trabalho é menos produtiva.
Conversei sobre este tema com Mariane Santana, pesquisadora que admiro, parceira em uma abordagem sistêmica da saúde mental e coletiva e que tem desenvolvido um trabalho fabuloso ao buscar entender a cultura da produtividade tóxica.
Nesta entrevista ela me conta o que é esta cultura, como podemos lidar com isso no nosso cotidiano, fazendo escolhas possíveis e a pergunta que não quer calar: dá para conciliar bem viver e produtividade?
Para conhecer mais o trabalho de Mariane, recomendo o perfil dela nas redes sociais. Veja abaixo como foi nossa entrevista.
O que é a cultura da produtividade tóxica?
É aquela que transforma o ato de produzir em uma obrigação moral, como se o valor de uma pessoa pudesse ser medido apenas por sua capacidade de gerar resultados. Qualquer desvio dessa marcha é logo visto como sinal de fraqueza ou incompetência.Continua após a publicidade
Ela nos convence de que precisamos estar sempre ocupados, sempre rendendo, sempre alcançando mais. Sendo assim, o que essa cultura produtivista faz é fornecer uma base ideológica para a autoexploração.
Produzimos muito além do que nossos corpos tendem a suportar, mas vivemos em um sistema que não oferece um retorno proporcional a esse sacrifício. Estamos em um contexto de crescente precarização do trabalho e de erosão de direitos sociais, mas essa cultura nos faz acreditar que nossos problemas se resumem a uma questão de otimização de tempo e de gerenciamento das próprias capacidades individuais. Na realidade, estamos apenas alimentando um ciclo de exaustão e de inseguridade social.
Como podemos lidar com isso no dia a dia?
Acredito que o primeiro passo é sempre a conscientização, estarmos lúcidos de que a cobrança incessante por produtividade tem gerado um sofrimento psíquico e relacional devastador para a nossa sociedade. Essa consciência precisa se expandir em múltiplas esferas, desde o indivíduo que se culpa por não render “o suficiente”, passando pelas famílias que naturalizam a exaustão feminina, até as organizações que glorificam o burnout e as políticas públicas que ignoram jornadas exaustivas e salários defasados.
Que escolhas são possíveis?
Em âmbito individual, é preciso descolonizar nosso imaginário, reaprender a descansar sem culpa, a dizer não, a apreciar o lúdico, a resguardar nosso direito ao sono, ao tempo livre e à desconexão, e a resgatar o convívio coletivo que nos proteja da lógica isolacionista.
É crucial, contudo, levar em consideração diversos recortes sociais que não possuem essa liberdade de escolha, para os quais os momentos de pausa realmente significam a possibilidade de demissão, precariedade ou endividamento.
Nesses casos, é preciso considerar que a exaustão é um fracasso coletivo. A sociedade precisa estruturar direitos trabalhistas que protejam o tempo de viver, além de ampliar a infraestrutura do cuidado para sustentar a reprodução social sem depender do esgotamento de algumas pessoas.
Dá para conciliar produtividade e bem viver?
Produtividade só faz sentido quando está a serviço da vida, e não como um fim em si mesmo. Precisamos desnaturalizar a ideia de que produzir mais é sempre melhor e começar a questionar: O que estamos produzindo? Como estamos produzindo? E, sobretudo, para quem e a que custo?
Os custos implícitos são sentidos na nossa saúde, na falta de convívio com amigos e amores, na perda do sentido que damos à nossa própria existência.
O que quero dizer é que, apesar do caráter tecnicista do termo, a produtividade nunca é neutra. Ela pode ser uma ferramenta de realização ou de exploração, de autonomia ou de opressão. A dignidade humana precisa ser o nosso horizonte, e não a idolatria vazia do produtivismo.