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Incêndio em alojamento leva ao resgate de 563 trabalhadores escravizados em MT

Alojamentos queimados por trabalhadores que se revoltaram com condições degradantes
Alojamentos queimados por trabalhadores que se revoltaram com condições degradantesImagem: Inspeção do Trabalho

Uma operação resgatou 563 trabalhadores de condições análogas às de escravo no canteiro de obras de uma usina de etanol de milho em Porto Alegre do Norte (MT). Ela foi deflagrada após um incêndio que destruiu o alojamento principal e foi causado por trabalhadores revoltados com as condições degradantes a que estavam submetidos, como ausência frequente de água e energia, banheiros sujos, quartos superlotados sem ventilação e má alimentação.

“Revoltados, alguns trabalhadores queimaram os banheiros e depois os alojamentos. A Polícia Militar foi chamada e houve confronto. Como parte dos trabalhadores já estava dormindo, alguns sofreram queimaduras”, afirma a auditora fiscal do trabalho Flora Regina Pereira, coordenadora da operação. “Após esse incêndio, viemos verificar a situação e constatamos o trabalho análogo ao de escravo.”

“As falhas no fornecimento de energia elétrica acarretaram a falta de água, sujeitando os trabalhadores a um ambiente extremamente inóspito. Agravando o quadro, a empresa abasteceu as caixas com água coletada em um rio, inapropriada para consumo humano”, apontou a procuradora do Trabalho Regina Duarte da Silva.

Iniciada em 28 de julho, a fiscalização produziu o maior resgate do ano em termos de vítimas, e conta com a Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal. A fiscalização ainda está em curso.

Após o incêndio, os trabalhadores foram transferidos para casas e hotéis na própria cidade e no município de Confresa, mas continuaram em condições consideradas degradantes pela fiscalização. Outros ficaram alojados em um ginásio esportivo.

A TAO Construtora, sediada em Sorriso (MT), foi responsabilizada pelos trabalhadores. A obra da usina estava sendo realizada para a Três Tentos Agroindustrial. A reportagem não conseguiu contato com a TAO até o fechamento deste texto para um posicionamento, mas irá atualizá-lo com ele assim que possível.

90 dias trabalhando sem folgas

Para além das condições degradantes, a fiscalização apontou a existência de servidão por dívida, com fortes indícios de tráfico de pessoas, com aliciamento em estados do Nordeste e Norte, principalmente Maranhão, Pará e Piauí. Os anúncios eram veiculados por carros de som e mensagens em grupos de WhatsApp, com promessas enganosas de ganhos elevados por horas extras.

Trabalhadores contaram que tiveram despesas da viagem até o canteiro de obras pagas pela empresa, mas descontadas dos salários, o que é contra a lei. Outros bancaram o próprio transporte.

De acordo com a operação, não havia equipamento de proteção individual adequado, condições precárias colocavam em risco a saúde e segurança dos empregados e acidentes não estavam sendo registrados adequadamente. Trabalhadores relataram larvas e moscas na comida e alimentos deteriorados.

A fiscalização identificou um sistema paralelo de controle de jornada, conhecido pelos empregados como “Ponto 2”, no qual as horas extras eram registradas fora dos controles oficiais e pagas por fora, fugindo dos impostos, taxas e contribuições.

Depoimentos apontam que operários trabalhavam por semanas consecutivas, inclusive aos domingos, chegando a 90 dias sem folga. Parte das vítimas estava submetida a jornadas exaustivas, indo das 5h30 às 21h.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

R$ 1000 para quem perdeu com o incêndio

O Ministério Público do Trabalho informou que está em processo de negociação de Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com a empresa, a fim de assegurar o pagamento das rescisões, as indenizações por dano moral individual e coletivo, as indenizações pelos gastos com o deslocamento para o Mato Grosso, o pagamento das despesas de retorno às cidades de origem e as reparações pelos bens materiais dos trabalhadores destruídos no incêndio. Também atua para garantir a correção das irregularidades nos alojamentos e na obra.

As rescisões ainda não foram pagas aos trabalhadores pela empresa, que já se comprometeu a arcar com os custos de passagem e alimentação dos trabalhadores para retorno aos seus locais de origem, devolver os valores cobrados indevidamente na ida para Porto Alegre do Norte e pagar R$ 1 mil por pessoa para ressarcir os pertences perdidos no incêndio.

Por fim, eles estão sendo cadastrados para ter acesso às três parcelas do seguro-desemprego voltado aos resgatados da escravidão.

Os trabalhadores serão acompanhados no pós-resgate pelo Projeto Ação Integrada para a qualificação profissional e reinserção no mercado de trabalho.

Um fato de preocupação por parte da fiscalização é como se dará a substituição mão de obra resgatada. Trabalhadores relataram que ônibus vindos da Bahia estariam a caminho para assumir as vagas.

Revoltas na construção de Jirau

A revolta dos trabalhadores em Porto Alegre do Norte lembra as dos operários que trabalharam na construção da hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia. Em março de 2011, eles destruíram parte do canteiro de obras diante das condições a que estavam submetidos, o que incluía falta de tratamento decente aos doentes, problemas no pagamento de hora extra e o não cumprimento das promessas dos recrutadores que os trouxeram para a usina.

Um ano depois, alojamentos foram incendiados e houve nova destruição no canteiro de obras. Nem a presença de tropas da Força Nacional, chamada para reforçar o controle em meio à crescente insatisfação dos trabalhadores, e da Polícia Militar, presente desde março de 2011, foi suficiente para conter a indignação dos operários. Na época, o governo Dilma Rousseff organizou um compromisso para aperfeiçoar as condições de trabalho na indústria da construção. A permanência de situações similares, mais de uma década depois, mostra que não avançamos como seria necessário.

Vale lembrar que, em setembro de 2009, um grupo de 38 pessoas já havia sido libertado de trabalho análogo à escravidão pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Rondônia e pelo Ministério Público do Trabalho, com apoio da Polícia Federal. As vítimas estavam trabalhando para uma construtora que prestava serviço ao consórcio responsável pela construção de Jirau. Os trabalhadores foram aliciados em Parnarama (MA) por intermediários, que prometeram bons salários.

Atraídos pela promessa, descobriram que seriam submetidos a um regime de dívidas quando chegaram ao canteiro de obras. A equipe de fiscalização encontrou os trabalhadores alojados de forma precária em um barracão de madeira, sem camas, com colchões improvisados, sem instalações elétricas e sanitárias adequadas. E superlotado.

Trabalho escravo no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

Os mais de 65 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.

No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Denúncias podem ser feitas de forma anônima pela Plataforma Ipê ou pelo Disque 100.

Fonte: Coluna Leonardo Sakamoto no UOL