ONG denuncia ao MPF cartilha de secretário da Saúde que criminaliza aborto
A organização Milhas pela Vida das Mulheres, que visa garantir o acesso ao aborto legal para brasileiras, protocolou na quarta-feira (15) um pedido ao MPF (Ministério Público Federal) para a retirada de circulação de uma cartilha do Ministério da Saúde que afirma que “todo aborto é crime”, tornando ilegal mesmo os casos em que o procedimento é autorizado pelas normas brasileiras (estupro, risco de vida à mulher e feto anencéfalo). O pedido foi encaminhado ao procurador-geral da República, Augusto Aras, e cita nominalmente o secretário nacional de Atenção Primária, Raphael Câmara, que editou o documento.
O manual assinado por Câmara tem como objetivo servir de orientação a profissionais do SUS de todo o país. O documento diz que mulheres que foram vítimas de estupro e solicitarem aborto legal devem ser investigadas —o que o movimento feminista, incluindo o grupo Milhas Pelas Vida das Mulheres, considera como um obstáculo a um direito já garantido por lei desde 1940. Além disso, revitimiza mulheres que sofreram violência sexual. O manual foi divulgado no início do mês.
O texto, segundo o pedido, traz informação falsa, já que a lei penal no país não considera aborto crime em duas hipóteses, quando a gestação é decorrente de estupro ou oferece risco de vida à gestante, e o STF (Supremo Tribunal Federal) adicionou, em 2012, uma terceira hipótese, quando o feto tem anencefalia.
Como explica a advogada criminalista Luiza Nagib, procuradora aposentada de Justiça de São Paulo e especialista em direitos das mulheres, o manual não teria validade. “Ninguém pode considerar crime algo que não está na lei descrito como crime”, diz a jurista. “Existe um princípio no direito que as pessoas só precisam fazer ou deixar de fazer o que está na lei, e isso é mais claro ainda para agentes públicos.”
Para Juliana Reis, fundadora e coordenadora do Milhas pela Vida das Mulheres, o texto é um “tigre de papel”.
“O Ministério da Saúde tem criado bombas que são absolutamente inconstitucionais e inaplicáveis, com o objetivo de gerar medo. Nossa ideia, com o pedido ao MPF, foi de reagir a isso legalmente já que, na prática, essa cartilha empurra mulheres para a clandestinidade”, Juliana Reis, ativista.
Governo tenta passar pautas antigênero sem aval da lei
Mariana Prandini, professora de Ciências Sociais na UFG (Universidade Federal de Goiás), uma das fundadoras do Coletivo Margarida Alves e pesquisadora na área de direitos sexuais e reprodutivos, explica que o manual editado por Câmara, apesar de não ter força de lei, cria uma situação de medo nos profissionais que realizam o procedimento nos serviços de saúde.
“Escutamos muitos servidores que têm medo das consequências, de serem perseguidos ou criminalizados. Então, o efeito de um manual como esse é disseminar o medo com a possibilidade de criminalização e responsabilização, além de aprofundar o estigma em torno do aborto”, diz a professora e ativista, que também é formada em direito.
Ela avalia que atos administrativos, normativas, cartilhas e manuais têm sido utilizados pela gestão do governo de Jair Bolsonaro (PL) como uma tentativa de criar pânico e aversão a um possível avanço.
“São documentos internos, como instruções e orientações, que não tem caráter da legalidade, mas, como tem um efeito prático —neste caso, amedrontar profissionais de saúde— criam obstáculos ao acesso do aborto legal”, explica.
Segundo ela, o governo não teria força para propor essas pautas via Congresso Nacional, seja por não conseguir compor uma maioria de parlamentares favoráveis ou mesmo porque a retirada de direitos como o acesso ao aborto legal é rejeitada pela maioria da população. Segundo pesquisa feita pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Instituto Locomotiva, 87% dos brasileiros apoiam o acesso, por meio do serviço público de saúde, à interrupção de gravidez por vítimas de estupro.
Atualmente, segundo a norma brasileira, basta a mulher relatar que sofreu uma violência sexual para, com seu consentimento, acessar o serviço de aborto em um hospital público.
A socióloga Jolúzia Batista, integrante do Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), avalia que o movimento do governo atende a uma agenda ultraconservadora pré-eleitoral.
“Um processo na Câmara exige mais traquejo e tem um ritmo de tramitação de projetos, além da oposição já que são temas bastante polêmicos, que exigiram debates no campo legislativo. Mas, com uma exigência de uma agenda internacional, se aliando com países como Hungria e Indonésia, o governo vem tomando essa iniciativa por meio de portarias e cartilhas, medidas que causam alardes”, diz.
Quem é Raphael Câmara
O ginecologista Raphael Câmara assumiu a Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde em junho de 2020, como representante do CFM (Conselho Federal de Medicina) dentro do órgão do governo. Conhecido pela sua posição contrária ao direito ao aborto, também é favorável à política de abstinência sexual para prevenção de gravidez precoce, proposta pela ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
Em maio deste ano, Câmara assinou uma cartilha endereçada aos prestadores de serviços em saúde para gestantes que previa o procedimento de episiotomia, o corte na região perianal que já é considerado um procedimento ultrapassado e uma violência obstétrica contra a mulher no parto.
A área que o ginecologista ocupa no Ministério da Saúde é considerada estratégica porque responde pelos postos de saúde, ambulatórios e atendimentos de saúde das famílias.
Universa entrou em contato com o Ministério da Saúde para questioná-los sobre o manual relacionado ao aborto e sobre a denúncia ao MPF. Também pediu entrevista com o secretário Raphael Câmara. Em nota, a pasta informou que vai realizar audiência pública “para ouvir a sociedade e especialistas sobre o conteúdo do Guia de Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”.
Fonte: Universa/UOL