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Pandemia: ‘A favela não está em home office’

Líderes de favelas relatam preocupação com alta de casos de covid-19 e aumento da fome, apontando aprofundamento do “abismo” entre comunidades e o poder público. “Há mais pessoas precisando do mínimo para sobreviver.”

Os efeitos econômicos da pandemia da covid-19 ampliaram a fome e a insegurança alimentar em favelas brasileiras. Sem emprego, e em alguns casos sem conseguir receber o auxílio emergencial, muitos moradores dessas comunidades precisaram recorrer a doações para conseguir alimentos e convivem com a insegurança em relação a como sobreviverão nos próximos meses.

Um levantamento feito pela Rede de Pesquisa Solidária, que ouviu 79 líderes de comunidades vulneráveis das cinco regiões do país, aponta que 67% deles identificaram fome e privação de alimentação em suas comunidades, e 40% afirmaram que a doação de alimentos não é suficiente e tem problemas de coordenação. A Rede de Pesquisa Solidária reúne acadêmicos de diversas instituições de pesquisa engajados em analisar os efeitos socioeconômicos da pandemia, e as entrevistas foram feitas entre 25 de maio e 5 de junho.

“O que mais tem é gente passando fome e necessidade, geralmente mães solo que trabalhavam por diárias ou pessoas que atuam na reciclagem e tiveram suas rendas cortadas”, afirma à DW Brasil José Antonio Campos Jardim, morador do Sul Pinheirinho, em Curitiba, e presidente da Central Única das Favelas (Cufa) do Paraná.

O problema é parcialmente minimizado pelas doações de alimentos e vales. Em meio à pandemia, a Cufa lançou a campanha Mães da Favela (maesdafavela.com.br) com o objetivo de aliviar o impacto da crise sobre as cerca de 5,2 milhões de mães que moram em favelas pelo país com cestas básicas físicas e “digitais” – quantia doada diretamente para as gestoras das famílias. Até o momento, já foram arrecadados mais de 11,5 milhões de reais.

Em Curitiba, além de distribuir 38 mil cestas básicas e 3 mil botijões de gás, a Cufa entregou um cartão com 240 reais para cerca de duas mil mães solteiras para compras ou pagamento de contas. Mas a população que mora em favelas na região metropolitana da capital paranaense é de cerca de 500 mil pessoas. “A demanda é muito grande”, diz Jardim.

A situação é parecida em Campo Grande, afirma Lívia Lopes, moradora do bairro Caiobá e coordenadora da Cufa de Mato Grosso do Sul. “Há muitas pessoas passando fome. Aumentou o número de pessoas nas favelas e periferias precisando de cestas básicas e do mínimo para sobreviver”, diz. Ela atua com uma equipe de dez pessoas, distribuindo alimentos, materiais de higiene e informação. Há 39 favelas na cidade.

Atuação da sociedade civil

Monise Picanço, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e uma das coordenadoras do levantamento feito pela Rede de Pesquisa Solidária, afirma que o que mais chamou sua atenção na pesquisa foi “como a nossa sociedade civil é forte, a despeito de não ter recursos e de estar com dificuldade de conseguir cesta básica para todos”.

“Há uma miríade de associações, desde equipes de futebol de várzea até líderes comunitários de bairro, tentando dar uma resposta para a crise”, diz.

Entre os líderes que responderam ao questionário, 66% citaram a presença de entidades e associações locais agindo para tentar reduzir os efeitos socioeconômicos da pandemia. Entidades religiosas foram mencionadas por 15%, associações culturais por 13%, e entidades políticas, por 10%. Segundo a pesquisa, líderes comunitários questionaram a baixa participação de grandes empresas nas ações e “percebem muitas vezes a atuação política nos territórios como estratégia de autopromoção para as próximas eleições”.

A atividade mais realizada por essas entidades é a arrecadação e distribuição de alimentos, citada por 70% dos respondentes, seguida pela arrecadação e doação de itens de higiene, limpeza e prevenção, mencionada por 43%.

O levantamento também identificou preocupação dos líderes com a falta de informações corretas sobre como agir para evitar o contágio pela covid-19: 33% dos participantes da pesquisa relataram ter desenvolvido ações educacionais e informativas com os moradores.

“Na questão da contaminação, muitas vezes a população não sabe em quem acreditar. As pessoas veem os nossos líderes [políticos] falando uma coisa, e a mídia falando outra. Aí acabam ficando perdidas, e a contaminação aumenta”, diz Hebert Novaes, presidente da Cufa de Rondônia.

Em Curitiba, as ações da sociedade civil incluíram criar cartazes e faixas sobre a importância de higienizar as mãos e usar máscaras e distribuir panfletos informativos sobre a covid-19 nas moradias.

A ausência ou precariedade do poder público nas comunidades é outro ponto identificado pela pesquisa. Jardim, da Cufa do Paraná, diz haver “um abismo” entre Estado e favela. “A gente tenta construir pontes e derrubar muros, mas isso já é difícil no cotidiano normal. Com uma pandemia em curso, complica-se ainda mais”, diz.

“A percepção dos líderes [sobre a presença do estado nas comunidades] é grave. Há tanto dificuldade de acesso à informação como para acessar serviços básicos, como saúde. Muitos relataram não ter acesso a políticas públicas, e que ninguém do Estado foi lá para ajudar”, afirma Picanço, do Cebrap.

A falta do Estado também foi sentida na hora de auxiliar as pessoas carentes a se cadastrarem para receber a renda básica emergencial. Jardim relata que diversos moradores carentes não tinham celulares aptos a baixar o aplicativo da Caixa, ou não tinham acesso à internet ou conhecimento para preencher o formulário corretamente.

“Muitos preencheram errado, faltou a presença do Estado auxiliando as pessoas para que conseguissem se cadastrar”, diz. Apesar dessa dificuldade, ele considera a renda emergencial uma “proposta boa” que deveria se estendida até pelo menos o final deste ano.

Preocupação com novos casos

Os três líderes comunitários ouvidos pela DW Brasil relataram estar preocupados com o recente aumento do número de casos e mortes nas favelas. “A favela não está em home office. Há porteiros, cozinheiros, que saem para trabalhar […] E, de uma forma geral, o número de contaminados e mortos [pela covid-19] vem aumentando”, diz Jardim.

Novaes, de Rondônia, também relata aumento de casos nas favelas de Porto Velho, e muita dificuldade para pessoas com os sintomas típicos da covid-19 conseguirem ser atendidas e fazer o teste na rede pública de saúde, sinalizando alta subnotificação de casos.

Nesse momento, o relaxamento das medidas de isolamento veio para acumular mais riscos, diz Lopes, de Cuiabá. “Deu uma afrouxada no distanciamento. Muitos estão voltando aos empregos, e muitos que foram mandados embora estão procurando outro emprego ou tentando sobreviver com o próprio negócio, correndo atrás de algo que possa dar lucro. Tem muita gente nas ruas, o afrouxamento foi uma ideia equivocada. O número de casos vinha aumentando e tende a aumentar mais”, diz.

Fonte: DW

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