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PGR defende que doméstica escravizada seja retirada de novo de casa de juiz

A Procuradoria-Geral da República defendeu que Sônia Maria de Jesus, resgatada de trabalho escravo doméstico por uma equipe de fiscalização na casa de um desembargador de Santa Catarina, em junho, e levada de volta por ele para sua residência com anuência do STJ e do STF, em setembro, seja novamente afastada dos patrões.

A PGR informou, em nota, que o desembargador e sua esposa, Ana Cristina Gayotto, foram denunciados pela instituição pelo crime de submissão de alguém à condição análoga à de escravo previsto no artigo 149 do Código Penal. A ação tramita no STJ.

O subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, que cuida do caso no Ministério Público Federal, concordou com pedido da Defensoria Pública da União (DPU) para que o Supremo Tribunal Federal considere ilegal a decisão judicial que permitiu o retorno da trabalhadora.

Com aval do ministro Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jorge Luiz de Borba levou Sônia de volta para a casa dele em 6 de setembro.

Negra e surda, ela estava em um abrigo desde que havia sido resgatada em junho.

O grupo especial de fiscalização móvel composto por Inspeção do Trabalho, MPT (Ministério Público do Trabalho), MPF (Ministério Público Federal), DPU (Defensoria Pública da União) e Polícia Federal foi o responsável por retirar a trabalhadora.

Diante da operação de resgate, o casal negou todas as acusações, disse que Sônia foi criada como uma filha e entrou com um ação para ser restituída ao seu convívio familiar.

Logo após a decisão de Campbell, o ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, negou um habeas corpus impetrado pela DPU contra a decisão do STJ. Ambos autorizaram o desembargador e sua esposa a visitarem Sônia no abrigo e a levarem de volta para a residência deles, em Florianópolis (SC), caso ela demonstrasse “vontade clara e inequívoca” Em seu parecer, o subprocurador-geral da República afirma que há laudos técnicos que atestam a vulnerabilidade da mulher e a impossibilidade de sua manifestação de vontade de forma livre e inequívoca.

“As circunstâncias são tão complexas que não soa exagero se comparar a situação àquela pela qual passam as vítimas da ‘Síndrome de Estocolmo’, estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor”, escreveu.

A coluna conversou com auditores fiscais do trabalho e procuradores do trabalho que participaram, nos últimos quatro anos, de resgates de empregadas domésticas submetidas a condições análogas às de escravo. Afirmaram que é comum que elas mantenham forte relação afetiva com os patrões, pois a casa deles era a única realidade com a qual tiveram contato por décadas.

A PGR também afirma que há oito depoimentos prestados por ex-funcionários do casal confirmando que ela trabalhava cotidianamente sem o recebimento de salários.

Carlos Frederico chama a ordem que permitiu a retomada do convívio entre investigados e vítima de “teratológica”. E diz que “o retorno da vítima à casa dos denunciados compromete não apenas seu processo de aprendizado em Libras, como interrompe a construção de sua autonomia e de desvinculação afetiva (dependência) em relação aos seus antigos patrões”.

“A posição da PGR reforça os fatos e fundamentos expostos pela Defensoria Pública da União ao impetrar Habeas Corpus e solicitar a liberdade da vítima resgatada perante a Suprema Corte brasileira”, afirmou à coluna o defensor público da União William Charley.

Em sua avalição, a decisão contestada no STF fere o ordenamento jurídico brasileiro e convenções internacionais que combatem a escravidão contemporânea.

Desembargador disse que doméstica era filha afetiva
Sônia tem deficiência auditiva, mas nunca havia sido ensinada a ela a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com isso, ela se comunicava principalmente por gestos com a família. Ela começou a aprender Libras e português no abrigo onde ficou após resgatada.

Segundo a fiscalização, na casa do desembargador, ela fazia refeições com as demais empregadas e realizava tarefas domésticas necessárias à rotina da residência, como arrumar camas, passar roupas e lavar louças sem o devido registro em carteira, sem receber salário, sem jornada de trabalho, férias e descansos semanais definidos. Não tinha acesso a atendimento de saúde, tendo perdido dentes.

Jorge Luiz de Borba afirmou que ela é sua filha afetiva, prometendo adotá-la. Contudo, uma postagem no Instagram de sua esposa mostra Sônia relacionada em uma lista de “funcionárias” do casal, conforme esta coluna revelou ainda em junho. Ela também não aparece entre as pessoas que Ana Gayotto postou, em um 23 de setembro, para celebrar o Dia dos Filhos. Também não aparece em outra imagem, de 2019, em que comemora a “família toda reunida”.

Questionada pelo UOL, na época da publicação do resgate sobre as postagens no Instagram, a família Borba afirmou, através de sua assessoria, que “em respeito às decisões da Justiça, não haverá manifestação enquanto perdurar o sigilo”.

Após a repercussão do caso, o desembargador, sua esposa e os quatro filhos do casal assinaram uma nota à imprensa anunciando que vão ingressar na Justiça com pedido de filiação afetiva, garantindo direitos de herança. Também afirmaram que jamais tolerariam trabalho escravo, “ainda mais contra quem sempre trataram como membro da família”, e que estão colaborando com as autoridades.

O coordenador da operação, Humberto Camasmie, foi afastado do caso sob a alegação de que violou o segredo de Justiça ao conceder uma entrevista a um programa de TV. Mas o caso já era público quando ele deu tratou do tema.

Brasil foi questionado na OEA sobre o caso
Organizações e sindicatos pediram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), no dia 27 de outubro, que o Brasil seja questionado sobre o caso de uma trabalhadora que, após ser resgatada de condições análogas às de escravo por uma equipe de fiscalização, foi levada de volta para a casa de um desembargador, em Florianópolis (SC), onde morava e trabalhava.

O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre outras organizações, enviaram comunicação à Tânia Reneaum Panzi, secretária-executiva da CIDH, que fica em Washington DC, nos Estados Unidos. Segundo as entidades, houve desrespeito às política de combate à escravidão adotada no Brasil e às normas internacionais subscritas pelo país.

Além do Cejil e da CPT, subscrevem a comunicação à Comissão Interamericana, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), o Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), a Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Anafitra), o Instituto Trabalho Digno (ITD) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados Rurais (Contar).

Eles pedem para a Comissão questionar o Brasil se Sônia recebeu atendimento social adequado após ser resgatada, se era capaz de consentir de forma livre, consciente e espontânea a retornar à casa de seus patrões, se ela vem recebendo educação formal para ser reinserida no mercado de trabalho.

E solicita que a Comissão peça ao Brasil que explique como vem combatendo o trabalho escravo doméstico, que medidas toma para evitar casos parecidos com o de Sônia e se os atores públicos envolvidos no combate do crime e reinserção de vítimas estão conseguindo fazer seu trabalho.

Trabalho escravo contemporâneo no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 61,7 mil trabalhadores resgatados, desde 1995, estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades. Em 2021 e 2022, 30 pessoas foram resgatadas por ano do trabalho escravo doméstico.

A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho
escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

Fonte: Coluna Leonardo Sakamoto no UOL