EaD está acabando com as universidades – e todo mundo finge não ver
“Educação não é mercadoria”, diz o grito de guerra tradicional das manifestações estudantis. Embora cheio de nobres propósitos, o protesto mira no passado. Para a maioria da população, a única educação disponível é a mercantilizada —e mercadoria das mais chinfrins disponíveis.
Divulgados na semana passada, os resultados do Enade (Exame Nacional de Cursos) de 2022 apontam os efeitos nocivos da explosão de matrículas na modalidade a distância no ensino superior. Para a surpresa de ninguém, as turmas de EaD (ensino a distância) apresentam desempenho pior (em muitos casos, bem pior) do que os estudantes em cursos presenciais.
Popularizada na pandemia, o EaD é a mais recente arapuca dos grandes conglomerados educacionais para capturar o suado dinheiro das classes populares. Estamos, sim, falando dos mais pobres, porque os ricos ainda possuem acesso desigualmente facilitado às instituições públicas, ou têm simplesmente optado por mandar seus filhos estudarem no exterior, numa espécie de recolonização da educação brasileira.
Em certas situações e para determinado tipo de aluno, as aulas online são válidas e têm potencial democratizante. Mas no modelo predatório adotado pelas instituições privadas na graduação, os problemas superam em muito os benefícios.
Um curso EaD reduz o ensino à instrução, retomando o ultrapassado modelo unidirecional de um professor falando para (centenas, milhares
de) estudantes; Restringe o contato entre alunos, e entre aluno e professor; padroniza aulas para diferentes turmas e até diferentes instituições, ignorando as heterogeneidades que são a marca de qualquer agrupamento humano; Subordina a educação às big techs, suas plataformas e soluções
proprietárias; Transforma os professores em aplicadores de aulas e infantiliza os graduandos com suas estratégias de “gamificação” e disciplinas que
parecem um tutorial do YouTube.
Claro que 10 entre 10 instituições vão dizer que seus cursos online trabalham com “metodologias ativas”, que têm modelo de ensino “flexível e adaptado ao cotidiano apressado”, que apresentam conteúdos de forma “dinâmica e divertida”. É a tal história: todo dia um otário e um esperto saem de casa. Quando eles se encontram, sai negócio. Quem espera que a educação seja simples fruição está buscando a coisa errada no lugar errado. Educação dá trabalho e leva tempo. Traz benefícios duradouros, mas é fruto de esforço e estudo.
Como “professor conteudista”, participei da elaboração de uma graduação EaD e recebi instruções bastante específicas:
Vídeos de até 10 minutos, com o conteúdo sempre lido em teleprompter;
Questões padronizadas em múltipla escolha no “padrão Enade” (alguém esperaria de um curso assim algo diferente do adestramento
para provas?);
Questões discursivas com gabarito pré-pronto de respostas (o que nos levava à desconfiança de que as disciplinas não teriam professor, algo
que nunca nos foi confirmado);
Obrigação de usar bibliografia específica de uma fraquíssima biblioteca digital (“e, por favor, indique poucas páginas para leitura!”);
E, óbvio, assinatura de contrato de cessão de direitos autorais à faculdade proponente até a quinta ou sexta geração.
O detalhe é que se tratava de uma instituição “de elite”, neófita no ambiente digital. Imagino a selvageria dos grandes conglomerados que iludem o povão com seus cursos online de 99 reais por mês. Não existe almoço grátis nem educação de qualidade por esse preço.
Está ruim e vai piorar
O Enade 2022 traz o retrato de um ensino superior com 48% dos alunos na modalidade online. O Censo da Educação Superior mostra que, em 2021, 62,8% dos ingressantes escolheram cursos a distância.
Em 2022, foram mais de 70%, sujeitos a diferentes tipos de armadilhas.
Já há instituições oferecendo três —isso mesmo, três— tipos diferentes de EaD.
Existe o EaD “tradicional” (tradicional hoje são os cursos sem interação direta com professor, com aulas relâmpago pré-gravadas, listas de exercícios padronizados);
A “live”, com algumas videoaulas ao vivo (algo na casa de uma hora por dia);
E o “semipresencial”, com uma ou outra aula na instituição, com pessoas de carne e osso.
As duas últimas modalidades existem apenas na cabeça dos marqueteiros de universidades, porque o Ministério da Educação (MEC) só reconhece cursos presenciais ou a distância.
O MEC, aliás, tem uma gigantesca responsabilidade pela esculhambação promovida pelo EaD. Em 2017, uma flexibilização nas regras possibilitou às instituições de ensino superior abrir até 250 (você leu certo) pólos EaD sem autorização (leu certo de novo) do MEC. E uma portaria de 2019 liberou uma carga de até 40% de aulas online em cursos presenciais. Sua leitura está correta de novo: mesmo graduações carimbadas como “presenciais” podem ter dois de seus cinco dias de aula na modalidade a distância, o que tem gerado precarização docente e ondas sem precedentes de redução do quadro de professores em instituições privadas.
Salvo raros espasmos, a fiscalização do MEC tem se mostrado inócua. É preciso regular o setor, rever a liberalização desenfreada do EaD, revogar legislação e, sim, fechar cursos estelionatários, que não educam e não empregam. Aliás, onde estão a UNE e as entidades de classe dos professores do ensino superior para pressionar por essa pauta? A divulgação dos resultados do Enade é uma boa deixa para finalmente começar a arrumar a bagunça.
Fonte: Coluna Rodrigo Ratier no Ecoa/UOL