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Projeto forma professores para ensinar que a África não é um ‘balaio de gatos’

Com base no Valongo, cais de chegada de escravizados ao Rio, iniciativa para professores resgata diáspora negra

O que um menino da periferia aprende nas aulas de história? Um bocado sobre a Europa: Renascimento, Guerra dos 30 anos, Idade Média, Inquisição.

“E o que ele estuda sobre os reinos africanos? Por que essa criança cresce imaginando que a África é um balaio de gatos, uma coisa só?”, questiona a escritora Eliana Alves Cruz, 53. “Por que não aprende que são 54 países completamente diferentes, embora sua maioria esmagadora seja negra?”

Não adianta achar que só os alunos têm lições a absorver: também é preciso ensinar a ensinar. É daí que parte o Valongo, Cais de Ideias, um projeto educativo voltado a professores da rede pública e que resgata a história da diáspora africana. O ponto de partida é o Cais do Valongo, região na zona portuária carioca que serviu como a principal porta de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas.

Patrimônio da Unesco e sítio arqueológico, dois títulos que o Valongo detém, não são suficientes para que a ancestralidade dos afrobrasileiros seja plenamente resgatada.

Tampouco basta a letra da lei, mais especificamente a 10.639, que instituiu em 2003, nas diretrizes básicas da educação, o “estudo da história do África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira”.

Muitos colégios, contudo, ainda a ignoram. A noção de que “apenas uma história é o centro do universo precisa ser desconstruída também nos professores”, diz Cruz, que atua no projeto.

“A gente não estuda nem o nosso continente. Não sabe nem que é língua mais difícil do mundo é uma indígena-brasileira.” Refere-se ao pirahã, falado por algumas dezenas de indígenas da Amazônia.

A fórmula na ponta da língua de gerações de estudantes, a de que Pedro Álvares Cabral é o descobridor do Brasil, escancara esse fosso histórico. É importante “não subestimar a inteligência do aluno”, afirma Cruz.

“Ora, ninguém pega caravela sem saber que tem um local de chegada do outro lado. Você não pega avião sem saber que existe um aeroporto para o avião pousar. Quando o europeu chegou aqui, já havia milhões de pessoas. A América não foi descoberta —foi pilhada, saqueada e humilhada.”

Todos poderiam sair ganhando se a cultura africana estivesse mais presente na sala de aula, e não só nas lições de geografia e história, diz Cruz. “Existe um método, um jogo angolano, que ensina matemática divinamente para as crianças. São desenhos na areia, o aluno tem que fazer um animal sair de um ponto e chegar no outro sem tirar o palitinho da areia.”

Também parte do Cais de Ideias, Mãe Celina de Xangô, 56, vê resistência à legislação que valoriza o ensino de seus ancestrais. “As escolas são racistas, sim. Continuam agindo de maneira desdenhosa diante da nossa história. Tem que ser o que o governo quer”, diz ela, gestora da Pequena África, área no Rio que guarda a herança cultural de povos escravizados.

E, se você apaga a história, ajuda a perpetuar suas vicissitudes. “Como líder religiosa, vejo o racismo nos massageando diariamente, com invasões aos nossos terreiros, agressões aos filhos de axé, o fato de não ter uma política pública que nos proteja nos vulneráveis”, diz a mãe de santo candomblecista.

É um debate que sempre retorna à falta de educação, e não só no sentido da grosseria. Quer entender por que as crenças afrobrasileiras são alvo fácil no Brasil? Volte para a escola, recomenda Cruz.

A Inquisição, por exemplo: “Quem é que estudou essa matéria sem saber do catolicismo, da Reforma Protestante, do Martinho Lutero? Por que, quando se traz o conteúdo do continente africano, não se pode tocar nas religiões?”

A sociedade, para ela, não é menos racista do que ontem. Mas está mais vigilante. “Uma parcela da população está tentando desarmar essa bomba-relógio que a colonização armou dentro da gente. Tivemos muito tempo na negação, como diz [a escritora e artista portuguesa] Grada Kilomba. Agora, como diz o [ator americano] Will Smith, o racismo está sendo filmado”, afirma Cruz.

Aos brancos, ela recomenda: se querem ser antirracistas, “estudem, e estudem deixando o achismo de lado, se racializando”. Ou seja, assumindo seu lugar de fala nesse debate: o de uma classe que se beneficia do racismo estrutural.

Autora de “O Crime no Cais do Valongo”, ela defende a arte como um caminho para fortalecer o antirracismo educacional. Seu livro remonta ao século 19, tempos de dom João 6°, e começa com a descoberta do corpo de um negociante do Valongo.

O formato policial foi escolhido para fisgar a juventude, conta em vídeo do projeto Valongo – Cais de Ancestralidades, que abriga a formação de educadores. Tudo “um grande pretexto para trazer toda essa história” à tona, afirma.

Uma das narradoras é Muana Lomué, moçambicana escravizada, que a certa altura diz: “Uma mulher do meu povoado jamais poderia deixar seus antepassados de lado”.

Fonte: UOL

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