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“Empresas precisam mudar a cultura da produtividade”, diz especialista

A psicóloga Renata* tinha uma carreira de sucesso em uma multinacional. Foi promovida para uma vaga no exterior, o que, segundo conta, não costuma acontecer muito com profissionais de recursos humanos. Era uma “mega oportunidade”. Mas nem tudo parecia ser o sonho profissional que ela tanto desejava.

Ainda trabalhando do Brasil para a filial da empresa no exterior enquanto a pandemia não a permitia viajar, a demanda de trabalho já a assustava, era muito alta. Além disso, a carga horária era extensa. Eram 12 horas por dia dedicadas ao trabalho, fora o sofrimento com o fuso horário.

“É muito difícil uma pessoa dizer ‘posso sair mais cedo porque tenho uma consulta no psiquiatra?’, mas não há a mesma resistência para dizer o mesmo sobre um dentista, por exemplo”, diz Márcia Barone, psicoterapeuta

“É só por agora, porque estou aprendendo, depois consigo fazer as coisas mais rápido”, pensava a psicóloga no início do novo trabalho. Mas as coisas não melhoraram. Vieram, então, os episódios de otite. O ouvido doía e coçava sempre que Renata estava com muito trabalho. Só o pronto-socorro visitou cinco vezes. Vários tratamentos depois, e nada do ouvido melhorar.

“Teve uma época que eu me entreguei. Não queria mais sair da cama, antes de trabalhar meu coração acelerava, ficava nervosa. Eu trabalhei vários dias chorando. Nos finais de semana, eu só queria ficar em casa deitada no escuro. O único fio de energia que me restava era para trabalhar”, Renata, recrutadora e psicóloga.

Trabalhando até esgotar

O esgotamento profissional, conhecido como síndrome de “burnout”, já foi reconhecido como doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde e foi incluído na Classificação Internacional de Doenças da entidade. Histórias como a de Renata se repetem aos montes. No Brasil, os casos registraram aumento de 21% em 2021, em relação ao período pré-pandêmico.

No entanto, muitos dos conteúdos que abordam o tema acabam se referindo muito mais ao que os profissionais podem fazer para evitar o burnout e menos sobre como as empresas podem se portar. Afinal, nem todo mundo trabalha muito por que quer.

Durante a pandemia, Michele* começou a trabalhar de casa e seu horário de trabalho era das dez da manhã à meia-noite, dependendo do dia. O cenário estava longe de ser o ideal, mas a insegurança financeira que a pandemia trouxe a colocou nessa situação. “Eu me sentia muito insegura de sair desse trabalho e, para complementar a renda, ainda mantinha outro trabalho como freelancer“, conta.

Assim como aconteceu com Renata, o esforço mental do trabalho gerou um problema físico. Uma distensão muscular causada por estresse acendeu em Michele a luz do burnout. Ambas reportaram o esgotamento a suas respectivas lideranças e o resultado foi o mesmo: nada foi feito.

“Dentro de várias empresas ainda existe essa cultura da produtividade em troca de tudo. Então, como eu vou falar que estou com um problema emocional se as pessoas no ambiente de trabalho entendem que isso se trata de uma fraqueza e não de um problema como qualquer outro? As empresas precisam repensar suas culturas internas”, diz Márcia Barone, psicoterapeuta e cofundadora da Falla Saúde Mental.

“A liderança é um colaborador enorme para nós que trabalhamos com as empresas, porque isso é algo que precisa vir dela também. Quando um líder fala sobre saúde mental, parece que existe uma autorização para que as equipes falem sobre o assunto também. O que diminui o preconceito na empresa sobre o tema”, Márcia Barone, psicoterapeuta e cofundadora da Falla Saúde Mental.

Para a especialista, existe espaço para mudanças, e é isso que sua empresa oferece. A Falla Saúde Mental ajuda corporações a criarem uma nova cultura corporativa sobre a saúde mental. E, segundo conta, as empresas com as quais já trabalhou estão dispostas a abordar o tema que se escancarou principalmente depois da pandemia de covid-19.

“Ainda existe um longo caminho pela frente. O que dificulta um pouco a abordagem sobre saúde mental nas empresas é um certo preconceito que impede que o tema se torne uma pauta constante, e constância é fundamental. Esse debate é para o ano todo, não só para alguns eventos como durante o Setembro Amarelo”, explica Barone.

O que as empresas precisam fazer para diminuir casos de burnout segundo Márcia Barone

  • 1. Mudar essa cultura da produtividade a qualquer custo: “essa busca enlouquecida por metas às vezes é importante, mas o trabalho não pode se resumir a isso. Por trás do trabalhador existe um ser humano que tem os seus limites”;
  • 2. Ver se existe possibilidade de flexibilização de horário: “para alguns funcionários o melhor é ir para o escritório e para outros, não. Então a rotina híbrida pode ser uma solução. Uma flexibilidade de horário e local de trabalho para funções que são possíveis pode garantir uma produtividade melhor”;
  • 3. Educação emocional para lideranças: “é importante para que eles possam reconhecer sinais de que alguém da equipe não está bem e também saber como agir nesses casos”;
  • 4. Falar com todos e disponibilizar plantão psicológico: “colocar plantão psicológico com profissional dentro da empresa é importante, mas é preciso que isso seja exposto para o coletivo. As pessoas não podem se sentir constrangidas em procurar ajuda”;
  • 5. Ofertar aos funcionários espaços de autoconhecimento: “para saber como lidar com o outro, é importante que você se conheça bem”.

“A gente precisa sair dessa ideia de jornadas enormes de trabalho que não tem nexo. O lazer e o ócio também são importantes. Se às vezes você não tem a condição de ter uma pausa voluntária, o seu corpo vai te parar involuntariamente”, Márcia Barone, psicoterapeuta e cofundadora da Falla Saúde Mental .

Para um ambiente de trabalho saudável

Mudar a chavinha de uma cultura corporativa que adoece os funcionários não é algo tão simples de se fazer. Afinal, a cultura da produtividade existe para além do ambiente de trabalho. Mas é nele, principalmente, que essa ideia se perpetua.

“Esse ambiente entende que pessoas com transtornos mentais não são aptas, não são produtivas”, explica a psicoterapeuta Márcia Barone. De fato, a produtividade pode ser afetada quando alguém passa por algum tipo de transtorno, como ansiedade e síndrome do pânico, mas isso pode ser revertido. Ou melhor, o entendimento do que é produtividade pode ser mudado.

Depois de passar por altas crises de ansiedade em seu antigo trabalho, Renata encontrou uma oportunidade de se mudar para a Alemanha. Em cada entrevista de emprego que fazia, sempre perguntava sobre a demanda de trabalho. Hoje, ela consegue manter uma rotina de exercícios e uma vida social sem deixar de ser uma boa funcionária.

Na Alemanha, as pessoas respeitam seu horário de trabalho. No escritório, às 17h todo mundo já foi embora. As pessoas têm tempo de viver suas vidas. O trabalho é só um meio de ganhar dinheiro para fazer outras coisas, o que se difere do Brasil. Na minha opinião, no Brasil a prioridade é o trabalho e o que sobra, se sobrar, você vive”, conta.

Nesse cenário, segundo Barone, todos estamos sujeitos a passar por algum problema emocional, que pode ou não se tornar um transtorno mais sério. As empresas precisam, então, lidar com isso de uma forma natural. Como uma dor de dente. Afinal, saúde mental e saúde física, de acordo com a psicoterapeuta, andam juntas.

“Precisamos trabalhar não só com os sintomas, mas desenvolver uma segurança psicológica nas empresas, cuidar das causas também. O ambiente de trabalho pode começar a ser visto como um lugar de saúde e não como um espaço de adoecimento”, completa.

* Foram usados nomes fictícios para as personagens da reportagem. Elas preferiram não ser identificadas

Fonte: Ecoa/UOL

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